Título: Clima ameaça potencial energético do país
Autor: Melo, Liana
Fonte: O Globo, 02/06/2008, Economia, p. 20

Segundo Coppe, aquecimento global vai reduzir vazão do Rio Madeira, onde duas hidrelétricas serão construídas

A região Norte está na mira do governo. É de lá que a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) pretende extrair 70% do potencial hidrelétrico do país. A licitação das duas usinas do Complexo do Rio Madeira (Santo Antônio e Jirau) derrubou a fronteira amazônica para a construção de grandes empreendimentos energéticos na região.

Somadas, as duas usinas terão capacidade para gerar 6.540 MW de potência. Só que o governo esqueceu de contemplar os potenciais impactos das mudanças climáticas no sistema energético brasileiro e não simulou eventual perda de vazão (a quantidade média anual de água que aflui para as usinas) nos reservatórios projetados para a região.

Pelos cálculos apresentados no estudo "Mudanças Climáticas e Segurança Energética no Brasil", essa perda poderá chegar a 15% nas duas usinas. O trabalho, de autoria de Roberto Schaeffer e Alexandre Szklo, ambos da Coppe/UFRJ, é o primeiro que cruza variáveis ambientais com o Plano Nacional de Energia 2030, produzido pela EPE.

Bacia do São Francisco pode perder até 26,4% de vazão

O estudo será apresentado hoje ao diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Jerson Kelman, e ao presidente da EPE, Maurício Tolmasquim.

Schaeffer e Szklo pinçaram do Relatório Especial sobre Cenários de Emissões, do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), as variáveis ambientais que utilizaram para simular impactos futuros no planejamento energético brasileiro. Eles usaram dois cenários: um de baixas emissões de gases de efeito estufa e, portanto, mais otimista (1); e outro, de altas emissões de gases de efeito estufa, que tende a elevar enormemente a temperatura da Terra, ou seja, mais pessimista (2).

- Ainda que não tenhamos simulado a bacia do Rio Madeira, simulamos a do Tocantins-Araguaia, que guarda enormes semelhanças. Nos dois cenários, a perda de energia tende a ser maior ao longo do tempo do que os 15% projetados como perda de vazão nos reservatórios - admitiu Schaeffer.

Apesar dos impactos previstos para o Norte, o Nordeste será a região mais afetada. A queda de vazão poderá sofrer uma redução média de 8,6% no cenário 1 e de 10,8%, no 2. As usinas mais afetadas, segundo o estudo, seriam as da bacia do São Francisco, que registrariam uma queda de 23,4% no cenário mais pessimista e de 26,4%, no cenário mais otimista.

- A se confirmarem essas quedas de vazão média, haveria efeitos negativos na produção total de energia média gerada pelas hidrelétricas, que cairia 1% no cenário 1 e 2,2% no cenário 2 - comentou Schaeffer, acrescentando que o efeito mais acentuado seria nas usinas do rio São Francisco, onde a produção de energia poderia cair até 7,7%.

Mesmo contando com um banco de dados de 77 anos, os autores do trabalho estão convencidos de que a Aneel, a EPE, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e a Agência Nacional de Águas (ANA) não podem mais ignorar as variáveis ambientais para planejar energeticamente o país.

É que esses padrões de previsibilidade das chuvas brasileiras não são mais suficientes para os tempos modernos. Os dados históricos de chuva no Brasil vêm sendo acumulados desde 1931.

Fontes alternativas também sofrerão impacto climático

Até as fontes alternativas de energia serão afetadas pela mudança do clima. É que, se, por um lado, as fontes renováveis são uma saída para abrandar os efeitos da mudança do clima; de outro, por serem fontes dependentes das condições climáticas, estão potencialmente sujeitas a impactos do próprio fenômeno que pretendem evitar.

- Uma parte desses efeitos negativos sobre a produção de matérias-primas para o biodiesel no Nordeste poderá ser compensada pela abertura de novas áreas de cultivo no Sul - avaliou.

Schaeffer comentou que a cana-de-açúcar para produção de álcool não sofrerá impactos relevantes, já que é uma planta que tolera altas temperaturas, desde que haja mais umidade no solo, através de irrigação ou chuva.

Já a produção de biodiesel pode ser negativamente afetada pela mudança do clima, sobretudo no Nordeste, onde algumas áreas podem se tornar inadequadas para o cultivo de oleaginosas como a mamona e a soja. O estudo não chegou a quantificar, como fez no caso das hidrelétricas, uma eventual redução da produção provocada pela mudança do clima.

- Só que a incerteza embutida na projeção das vulnerabilidades do setor de energia no Brasil às mudanças climáticas não é razão para que o país deixe de se preparar para elas - concluiu Schaeffer.