Título: O mundo de Lula
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 04/06/2008, O País, p. 4

Enquanto o vice-presidente José Alencar garante que, apesar de nossas mazelas sociais, já somos um país do primeiro mundo, no gabinete do presidente Lula, no Palácio do Planalto, há um globo terrestre onde a América do Sul e a África estão na parte de cima, muito antes de o colunista Roger Cohen do "The New York Times" ter escrito que o mundo está de cabeça para baixo, com países emergentes representando 44% do PIB mundial, liderados pela China, e com o Brasil ganhando relevância nas relações internacionais, especialmente devido às novas descobertas de petróleo e aos preços das commodities. O presidente Lula é obcecado pelo papel que acha que o Brasil tem que exercer no mundo, até que decidiu adotar uma representação que reflete melhor suas ambições.

O mapa-mundi tal qual o conhecemos é uma projeção eurocêntrica de autoria do geógrafo Gerhard Mercator, em 1569, e reflete uma ordem mundial que ainda hoje prevalece. Mas nada impede que outras representações do mundo sejam feitas.

Mapas "nacionalistas", com o Brasil no centro, existem desde 1949, quando o cartógrafo João Soukup fez um mapa com o centro em São Paulo. O mais recente é o do administrador de empresas Stephen Kanitz, que lançou um mouse pad em homenagem aos 500 anos do Descobrimento, com o Hemisfério Sul na parte superior.

Tanto a representação do mundo "de cabeça para baixo" quanto a da Amazônia americanizada ou internacionalizada, que circula pela internet, refletem a disputa que se trava no mundo por novas tecnologias que venham a substituir o petróleo, e no mercado mundial de alimentos, que sofre uma inflação acentuada. E o Brasil está bem posicionado no centro nervoso dessa discussão, nas suas várias versões.

"Os dedos que apontam contra o etanol estão sujos de petróleo", afirmou dramaticamente o presidente Lula ontem na sede da FAO, em Roma. Os dele também. Quem não se lembra daquela mão espalmada anunciando a auto-suficiência brasileira em petróleo?

O presidente Lula acusar as companhias petrolíferas de estarem por trás da campanha contra o etanol é um tiro no pé, pois a Petrobras é a terceira petrolífera do mundo, e vem fazendo descobertas de jazidas importantes que nos colocarão nos próximos anos como exportadores de petróleo.

Não é a melhor aposta o governo brasileiro demonizar o petróleo, nem tentar mudar a matriz energética do mundo tão rapidamente. Por outro lado, o desmatamento na Amazônia está aumentando dramaticamente, e esse é um calcanhar de Aquiles do governo brasileiro, que não consegue montar um esquema eficaz de controle.

É preciso relativizar a posição do governo brasileiro de que nenhum país no mundo tem condições morais de criticar o Brasil na sua política de preservação do meio ambiente.

Não é porque os países europeus não deixaram uma árvore em pé nas suas florestas que podemos fazer o mesmo hoje. Não é porque os Estados Unidos mataram todos os seus índios que nós aqui não temos que preservar os nossos indígenas.

Mas também não é possível que os países desenvolvidos exijam de nós que abramos mão de nosso desenvolvimento. Ou que se mantenham reservas indígenas que venham a ser territórios autônomos, controlados por ONGs estrangeiras.

Temos que aproximar a modernidade da alta tecnologia do agronegócio, que nos transformou em uma potência exportadora, da preservação da Amazônia. Ontem, o presidente do Bird, Robert Zoellick, pediu o fim dos subsídios para os biocombustíveis à base de oleaginosas e milho, e elogiou o etanol brasileiro.

O professor Mauro Rezende Lopes, do Centro de Estudos Agrícolas da Fundação Getulio Vargas, está convencido de que somente a tecnologia é capaz de salvar a Amazônia. Segundo ele, a inovação tecnológica na agricultura faz com que poupemos 70 milhões de hectares.

"Se tomarmos a produção hoje de 143 milhões de toneladas e comparamos com o rendimento de antes da existência da Embrapa, seria necessário cultivar 120 milhões de hectares, quando hoje cultivamos cerca de 50 milhões de hectares", ressalta.

Da mesma maneira, hoje a cana de açúcar ocupa no Brasil apenas 8,5 milhões de hectares, e a produção de etanol usa cerca de 4,5% dessa área, o que significa que o país pode perfeitamente aumentar o cultivo da cana-de-açúcar e o de soja, por que é necessário manter 15% da área em rotação permanente.

Tanto os Estados Unidos quanto a França, o quinto maior produtor mundial de etanol, têm que dar fortes subsídios para tornar economicamente viável o combustível que produzem, nos EUA, do trigo e milho, e na França, da beterraba.

O que os difere do Brasil é a produtividade por hectare. A cana-de-açúcar é duas vezes mais produtiva que o milho, nos Estados Unidos. O custo subsidiado da produção do litro de etanol de milho é de US$0,30 nos Estados Unidos, enquanto o de cana, sem subsídios, no Brasil, é de US$0,22.

Mesmo que existam excelentes perspectivas, o mercado internacional, tanto para produtos quanto de tecnologia, será fundamental para garantir retorno dos investimentos na área, e promover os recursos para pesquisa.

O forte lobby dos produtores americanos, como previsível, já está se movimentando, para impedir o fim da taxa que os Estados Unidos cobram sobre o etanol importado, uma das reivindicações que estão sendo discutidas.

O temor deles é que o acordo com os Estados Unidos permita ao Brasil se utilizar dos países do Caribe, isentos das taxas de importação pelo acordo de livre comércio, para exportar etanol e, sobretudo, tecnologia para os Estados Unidos.