Título: o futuro do Rio em jogo
Autor: Pereira, Marcel
Fonte: O Globo, 05/06/2008, Opinião, p. 7

Surge no Congresso Nacional, em torno da distribuição dos royalties do petróleo, uma nova proposta que agride de frente os interesses do Estado do Rio de Janeiro. Seu foco é: em nome do zelo por uma supostamente racional aplicação de recursos, o Rio de Janeiro deveria se sacrificar e abrir mão da parte que lhe compete. Mais uma vez o pedido é que o Rio se sacrifique pelo melhor do Brasil.

O senador Aloizio Mercadante, autor da proposta (artigo no GLOBO de 1º de junho), nega o que é verdade absoluta: o estado de São Paulo, a quem o nobre senador representa em Brasília, tem muitos interesses no processo de redistribuição. Atualmente, o Rio de Janeiro recebe 86% dos recursos de royalties. Uma redistribuição seria um jogo no qual só perderiam cariocas e fluminenses.

Até quando pedirão sacrifícios ao Rio de Janeiro? Por que São Paulo não abre mão de seu ICMS em prol dos estados consumidores de suas mercadorias? O ICMS do petróleo já é recolhido no destino, na bomba de gasolina do consumidor final.

Uma vez mais se espera a repetição de um sacrifício do Rio. Como em 1960, quando os únicos sacrificados pela transferência da capital federal para Brasília foram a cidade do Rio e os cidadãos cariocas. Foi-se a capital, atrás dela seguiu o capital, humano e financeiro. Em seguida, em 1974, mais sacrifício: uma fusão extremamente mal planejada e mal concebida entre dois estados que mais pareciam água e azeite de tão distintos entre si - a Guanabara e o antigo Estado do Rio. Um processo propositalmente voltado para o desmonte político da cidade que fazia oposição aos militares no poder.

De tão malfeito, as seqüelas administrativas da desordem instaurada são sentidas até hoje. A saúde, por exemplo, é um caso típico. O Rio de Janeiro é diferente de outras capitais, como São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, onde a rede de hospitais no perímetro municipal é administrada pela prefeitura, e nos municípios da periferia metropolitana é administrada pelo governo do estado. Após a fusão, a rede de hospitais estava toda no antigo Estado da Guanabara. Ela foi, então, sumariamente dividida entre as alçadas estadual e municipal. Isso impediu o desenvolvimento de uma rede de suporte aos municípios da periferia metropolitana, sobretudo na Baixada Fluminense. Essas prefeituras, ao invés de usufruírem de uma rede de hospitais, até os dias de hoje investem em ambulâncias para conduzir seus pacientes à rede de hospitais do governo do estado, em ampla maioria localizados em nossa desamparada capital.

Pelo sacrifício feito pelo país, o Rio de Janeiro submergiu num processo de fuga de capitais e desaceleração econômica. O empobrecimento se acentuou a partir da década de 80, e a desordem e a violência urbanas inibiram novos investimentos. O ciclo de decadência levou à redução do fluxo de turistas. Os serviços públicos se mudaram para Brasília e as matrizes de empresas e bancos, para São Paulo. A cidade sofreu perda econômica trágica, com expressiva diminuição dos postos de trabalho. A dinâmica é conhecida de sociólogos e economistas: menos emprego, mais roubos e assaltos. Em seguida, por causa da violência, menos empregos ainda.

Os números da violência demonstram a intensidade do agravamento. Em 1982, foram registrados pouco mais de 2.100 homicídios na cidade do Rio de Janeiro. Em 1991, foram registrados 7.518 homicídios. A taxa quadruplicou em uma década. Os dados econômicos mostraram o tamanho da agonia sob a qual sucumbiu a cidade do Rio. No intervalo entre 1996 e 2003, no ápice da crise econômica que atingiu o município, a renda da cidade encolheu 35%, numa catástrofe silenciosa. Quando agora surgem sinais de retomada, qual o pedido escutado? Que o Rio faça novo sacrifício...

É preciso ter mais cuidado, sim, com os excessos causados pela abundância de royalties especialmente concentrados em alguns poucos municípios. Uma disciplina fiscal mais rígida se faz necessária, para reequilibrar as forças econômicas dentro do Estado do Rio e redistribuir a concentração populacional que há em torno de áreas de baixa prospecção de empregos. O grande desafio do estado, hoje, é "ir além do petróleo" e dar um choque de empregos em sua Região Metropolitana. A decolagem passa, obrigatoriamente, pela alocação ótima de royalties dentro do próprio estado.

Esta é a hora de se abrir a "caixa de Pandora" do orçamento estadual para mostrar à população a que passos o estado caminha nesta direção. É uma excelente oportunidade para o governador Sérgio Cabral mostrar que seus planos de reerguimento do Rio vão além de bater duro na segurança pública.

MARCEL PEREIRA é diretor de pesquisas do Instituto Atlântico.