Título: Gatos que não miam
Autor: Kelman, Jerson
Fonte: O Globo, 06/06/2008, Opinião, p. 7

O furto de energia, o famoso "gato", causa prejuízos que afetam não apenas o caixa das empresas, mas também o bolso de todos os consumidores. Salta aos olhos que isso não é razoável. Por que a Aneel permite que os consumidores honestos sejam prejudicados pelos desonestos? Se o cidadão honesto paga pontualmente sua conta de luz, parece óbvio que a Agência Nacional de Energia Elétrica deveria isentá-lo do custo da energia furtada.

Deveria. Mas não é tão simples. Se a Aneel aplicasse sem pestanejar essa regra óbvia em 100% dos casos, a segurança energética de todos, honestos e desonestos, ficaria ameaçada. Explicação: de cada R$100 pagos pelo consumidor, apenas R$6 correspondem ao lucro da empresa de distribuição, e em algumas concessionárias essa quantia é aproximadamente o que se perde com o furto de energia. Assim, se a Aneel decidisse responsabilizar inteiramente as distribuidoras pelo prejuízo causado pelos desonestos, não haveria qualquer remuneração para o capital aplicado pelos acionistas. Nesse cenário o serviço cessaria de ser prestado, com prejuízos incalculáveis para todos.

Para tentar evitar que os justos paguem pelos pecadores, a Aneel utiliza mecanismos econômicos que incentivem as concessionárias a combater o furto. Primeiro, ao autorizar investimentos em tecnologia "antigato". É o caso, por exemplo, da medição eletrônica adotada pela concessionária Ampla, que foi considerada uma das dez maiores inovações brasileiras, na última década, por escolha de comitê organizado pela revista "Exame". Segundo, ao não permitir que todo o prejuízo seja repassado para os consumidores honestos. Significa, no caso da Light, que parte da energia comprada pela empresa não é reconhecida no cálculo da tarifa. Nesse caso, o "mico" não é inteiramente repassado aos que pagam a conta de luz. Parte fica com os acionistas da distribuidora.

A medição eletrônica é uma experiência recente no Brasil, que tem enfrentado, compreensivelmente, uma razoável oposição, inclusive por parte de lideranças bem-intencionadas. Primeiro, porque ocorreram efetivamente alguns erros de medição. Nesses casos, a fiscalização da Aneel atuou para sanar as falhas, determinando à concessionária que procedesse ao refaturamento das respectivas contas. Segundo, porque muitos consumidores honestos receberam contas que pareciam erradas, mas que uma análise mais detalhada revelou a existência de instalações clandestinas feitas por antigos moradores.

Entre os que se opõem à medição eletrônica há os bem-intencionados que não perceberam ainda que o propósito da novidade é reduzir a conta dos consumidores honestos. Há também os mal-intencionados que defendem o suposto direito dos que querem consumir abusivamente e pagar pouco, ou nada. Nesse embate, nossa inspiração vem de Oswaldo Cruz, que soube enfrentar altivamente os desinformados da época que protestavam contra a campanha de erradicação da febre amarela.

JERSON KELMAN é diretor-geral da Aneel.