Título: Os mensalões da contravenção
Autor:
Fonte: O Globo, 08/06/2008, Rio, p. 16

O PEN DRIVE DO BICHO

Contabilidade revela que foram pagos R$35,4 milhões em propinas e mesadas

Vera Araújo e Natanael Damasceno

No lugar dos velhos livros-caixa guardados em cofres, a contravenção agora recorre aos meios eletrônicos para registrar sua contabilidade e usa codinome para proteger seus beneficiados. As diferenças, no entanto, param por aí. Como nas listas apreendidas em 1994 na "fortaleza" do bicheiro Castor de Andrade, as planilhas de gastos encontradas pela Polícia Federal, em 2006, num pen drive (acessório que armazena arquivos de computador) do contraventor Rogério Andrade revelam que ex-integrantes do alto escalão do governo do estado teriam sido beneficiados com o pagamento de propinas.

A lista virtual aponta mensalões para possíveis autoridades, como os R$10,2 milhões pagos de 2003 a 2006 a uma mulher identificada como Madame, numa lista denominada "Levados barra". Segundo relatório da Operação Segurança Pública S/A, onde consta a análise da contabilidade encontrada no pen drive do contraventor, esse nome seria uma "possível referência à ex-governadora Rosinha Garotinho", que ficou à frente do governo de 2003 a 2006. O período coincide com o da retirada dos valores, que variam de R$300 mil a R$340 mil. Apesar de delegados da PF acreditarem que haja fortes indícios contra a ex-governadora, o Ministério Público Federal decidiu não denunciá-la, por entender que são apenas ilações.

Nas planilhas a que O GLOBO teve acesso, a soma dos valores pagos pela organização entre dezembro de 2003 e agosto de 2006, entre propinas e mesadas, chega a R$35,4 milhões. Na análise dos dados do pen drive, os policiais levantaram ainda detalhes da arrecadação das "empresas", como são chamados os pontos de apuração do jogo de bicho, das máquinas de caça-níqueis e de um bingo.

Dados incluem ainda receita do bicho

Ainda de acordo com o relatório do setor de inteligência policial da Polícia Federal, há suspeitas de que os codinomes Príncipe e Cardeal, usados pela organização criminosa de Rogério em sua contabilidade, seriam do ex-governador Anthony Garotinho e do ex-chefe de Polícia Civil e deputado estadual Álvaro Lins. O primeiro teria recebido R$626.950 só no ano de 2004, conforme demostra a lista intitulada "Relação levados". Já o segundo teria recebido R$157.984 no mesmo ano. As propinas não teriam parado por aí. Nas listas identificadas como "Levados BNG", que compreendem o período entre janeiro de 2005 e agosto de 2006, os dois codinomes teriam recebido, respectivamente, R$957 mil e R$215 mil.

A Policia Federal acredita que as altas somas das propinas teriam como objetivo parar a repressão às atividades ilícitas da quadrilha de Rogério e, em contrapartida, ajudar em campanhas políticas. As informações do pen drive implicam os acusados em crimes como corrupção ativa e passiva, formação de quadrilha e facilitação do contrabando de peças para máquinas caça-níqueis.

O pen drive com a contabilidade do grupo foi apreendido com o soldado da PM reformado Roland de Holanda Cavalcante, preso em companhia de Rogério em setembro de 2006. Só nos últimos meses, no entanto, foi produzido um relatório sobre as movimentações.

A exemplo das famílias mafiosas, generosas quantias eram distribuídas como pensões vitalícias aos parentes. As três irmãs de Castor de Andrade e três herdeiros de uma outra irmã dele, já falecida, continuam a receber suas partes. Até Beth Andrade, viúva do filho de Castor, Paulo Roberto de Andrade, o Paulinho Andrade, recebe de Rogério a sua pensão. Por ironia, Rogério foi condenado pelo assassinato de Paulinho, morto em 1998, na Barra. Entre 2004 e agosto de 2006, quando o pen drive foi apreendido, Beth teria recebido pouco mais de R$1 milhão.

De acordo com o relatório da PF, os irmãos Rogério, Renato e Rinaldo Costa de Andrade e Silva eram identificados na lista como M1, M2 e M3, respectivamente. Segundo os investigadores, as letras fariam alusão aos três mosqueteiros, Athos, Porthos e Aramis, cavaleiros de Luís XIII, do clássico de Alexandre Dumas.

Os analistas acreditam que as referências à nobreza continuam. Eles defendem que, ao dar apelidos às pessoas a quem distribuía as propinas, Rogério mostrava toda a sua irreverência: "associar Anthony Willian Garotinho ao Príncipe seria o mais compreensível, fazendo uma alusão ao príncipe Willian, filho da princesa Diana e do príncipe Charles". Segundo eles, a própria extensão do nome Anthony Willian Garotinho Matheus de Oliveira já seria semelhante aos nomes utilizados pela nobreza. Príncipe também é o título dado ao consorte da rainha. Os valores pagos a Príncipe, inclusive, são superiores aos de Cardeal, o que demonstra um respeito à hierarquia.

Garotinho e Rosinha, através de sua assessoria, afirmaram que nunca receberam recursos da contravenção. E que o MP não ofereceu denúncia com base no relatório da PF, por considerar que o documento é um amontoado de inconsistentes ilações, e que seu autor deveria escrever novelas.