Título: O futuro sempre chega
Autor: Feuerwerker, Alon
Fonte: Correio Braziliense, 14/05/2009, Política, p. 4

O presidente da República conduz em situação invejável o barquinho ao porto, na reta final do mandato. Nesta altura, governos menos bem avaliados já vivem o ambiente de corrosão quando, segundo a piada brasiliense, nem mais cafezinho é servido ao governante que vai sair. O sentido mais aguçado dos políticos é o olfato. Sentem de longe, e muito cedo, o cheiro da carne em decomposição. O exemplo mais recente é o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Não parece ser até agora o caso de Luiz Inácio Lula da Silva.

Os americanos criaram uma boa expressão para caracterizar o poderoso que perdeu a capacidade de reproduzir o próprio poder. ¿Lame duck¿, pato manco em inglês. Classicamente, o termo designa a situação entre a eleição do sucessor e a posse. Nos Estados Unidos, usa-se o rótulo de maneira ampla, para o Executivo e o Legislativo. Por exemplo, quando estourou a tempestade financeira, no fim do ano passado, a dúvida era se as medidas econômicas contra a crise deveriam ou não ser votadas pelo Congresso ¿lame duck¿, ainda na função, mas com herdeiro já nomeado.

O esforço maior de qualquer governante é cuidar do próprio poder. Coisa relativamente mais simples de fazer quando não há data precisa para sair do cargo. É assim, por exemplo, nos sistemas parlamentaristas. O sujeito vai ficando até perder o apoio político necessário para continuar na cadeira. Aí um dia, qualquer dia, é mandado para casa. Pelo Parlamento ou até pelo próprio partido. Como se deu há pouco com o chanceler trabalhista britânico Tony Blair.

Já nos modelos limitados pelo calendário, como o nosso, a folhinha é o rombo pelo qual o poder vai vazando sem perdão. O que o governante pode tentar controlar é o calibre do buraco do vazamento. Lula tem feito isso com maestria, usando a única arma eficaz nessa situação: a criação de expectativas de poder. Eis a razão do lançamento teoricamente prematuro da candidatura da ministra Dilma Rousseff. Governantes menos vitaminados procuram retardar a inevitável disputa pela sucessão. Lula antecipou-a, para controlá-la melhor. Só faz isso quem tem cacife para colocar na mesa.

O projeto Dilma tem dupla função. No cenário ótimo desenhado por Lula, ele passa a faixa a ela algumas horas após o Ano Novo de 2011. Mesmo no outro cenário, a candidatura da chefe da Casa Civil é a força gravitacional útil para Lula manter o apoio político de que precisa, para fechar 2010 e emplacar 2011 sem sobressaltos. Aliás, quem observa o tecer das relações do petista com Aécio Neves e José Serra percebe o tamanho do investimento feito pelo presidente por um futuro de paz com quem o suceda.

É natural que num cenário assim, de presidente forte, volta e meia apareçam as conversas sobre um novo mandato para Lula. Ainda mais em um país como o nosso, onde o segundo esporte nacional, depois do futebol, é a pseudociência política de conveniência. No Brasil, é sempre bom ficar de olho nos espertos que, de tempos em tempos, nos apresentam a fórmula mágica, a reforma do momento que vai salvar a República. No mais das vezes, não é com a República que eles se preocupam, mas com o próprio pescoço.

Eu posso estar errado, e certamente você me cobrará se estiver, mas nenhum movimento recente de Lula indica que ele próprio esteja a preparar a luta por mais um mandato consecutivo. A tese pipoca aqui e ali no entorno, especialmente o mais afastado. O neoqueremismo seria conveniente para o consórcio governista? Talvez. As ambições iriam automaticamente para o arquivo e os interesses sobressaltados encontrariam um belo guarda-chuva para escapar da tormenta. Quem na base do governo seria maluco de ficar contra Lula se Lula fosse candidato à reeleição?

Mas se o continuísmo com Lula é uma miragem em certo entorno, definitivamente não é bom negócio para o próprio. Como disse, governantes sábios cuidam do próprio poder. Já os muito sábios preparam a melhor maneira de perdê-lo. Porque na política, como nos demais aspectos da vida, há uma única certeza absoluta: o futuro sempre chega. Pode demorar mais, pode até ser empurrado para adiante, mas sempre chega. E chega com a conta.