Título: A soldo de criminosos
Autor: Süssekind, Elizabeth
Fonte: O Globo, 17/06/2008, Opinião, p. 7

Integrantes das Forças Armadas seqüestraram três jovens em uma favela, levaram-nos a uma unidade do Exército e os venderam, em domicílio, a bandidos inimigos das vítimas, em outra favela, para que fossem comodamente executados e jogados no lixo.

Fica a questão, reiteradamente dirigida às forças policiais do país: como se recrutam, armam, treinam, fardam, remuneram profissionais e não se fecha o ciclo na responsabilização, com o controle rígido e eficiente de suas ações? Esses militares - no caso desses militares - nunca demonstraram tendência ao crime, desequilíbrio, envolvimento com irregularidades, seus prontuários são impecáveis? Se já, há uma cadeia de facilitação ou acobertamento que o Exército e a Justiça Militar têm que investigar e divulgar. Se não, ou seja, são militares de boa conduta e desempenho profissional adequado, a questão é mais complexa. Exige estabelecimento de outros filtros de controle interno para detectar e deter integrantes capazes de praticar crimes, aproveitando-se das facilidades de pertencerem a uma corporação, receberem dela remuneração e abrigo, portarem armas, vestirem farda nacional e disporem de veículo militar.

Como é possível que onze militares, presente a cadeia imediata de comando de três sargentos e um tenente, a soldo de criminosos, pratiquem crime como esse, abertamente, pisando com os coturnos, que nós todos compramos, sobre toda a legislação do país? Que jurisdição teriam sobre a região? Com que simplicidade acabam covardemente com a vida de pessoas e detonam a imagem do Exército ao qual servem e devem? Não prestam contas do que fazem, de onde estão, da munição gasta, do percurso do veículo oficial? Entendiam que tudo ficaria por isso mesmo, atribuindo-se às vítimas, simplesmente, o "desacato" as suas excelsas e inquestionáveis autoridades?

Trata-se de mais uma modalidade de domínio do crime sobre o Estado. Através de grupos, quadrilhas, milícias, máfias, redes, e por meio da tolerância de partidos políticos e instituições, o crime invadiu profundamente o Estado. E tem ocupado os espaços deixados livres por incapacidade, descaso, oportunismo e indiferença oficiais e do grande público. Chama a atenção a freqüência com que são cometidas barbaridades, logo acobertadas, justificadas, liberadas com base em manipulações legais ou políticas e interpretações pusilânimes.

Moradores de comunidades pobres pouco contam, seus direitos não são reconhecidos, não se dá crédito ao que alegam, seus argumentos não têm repercussão, vivem de se explicar, de tentar mostrar o que não são. Criminalizados antecipadamente, são caçados indistintamente, porque são pobres, são negros, a educação que se lhes permite é escassa e incompleta, moram em lugares onde só pobres moram. E porque são obrigados a conviver com criminosos, a obedecer a suas imposições. O poder local se reveza entre adolescentes-traficantes e adultos milicianos, fregueses da adesão de policiais que chantageiam e ameaçam colegas e superiores, cobrando inaceitável silêncio e complacência, com o que se mantêm imunes, desafiadores, donos de pedaços da cidade que ajudam a partir.

A indiscutível progressão do crime significa que o Estado não tem conseguido interrompê-la e que a população não se sente responsável por nada além de lamentar. E que estamos entregues à insegurança, à espera da vez individual, já que a vez social já chegou há tempos.

ELIZABETH SÜSSEKIND é professora da PUC-Rio.