Título: Sem arrependimento
Autor: Cássia, Cristiane de; Goulart, Gustavo
Fonte: O Globo, 17/06/2008, Rio, p. 14

A GUERRA DO RIO

Tenente diz que só queria dar um "corretivo" nos 3 jovens que entregou a traficantes

Cristiane de Cássia, Gustavo Goulart e Sérgio Ramalho

Otenente do Exército Vinícius Ghidetti de Moraes Andrade, de 25 anos, idealizou e comandou a entrega de três jovens do Morro da Providência, no Centro, a traficantes do Morro da Mineira, no Catumbi. A informação foi usada pela Polícia Civil e pelo Ministério Público como base para os pedidos de prisão, aceitos pela Justiça, dos 11 militares envolvidos no caso. Em depoimento, o oficial admitiu ter ameaçado escrever as iniciais da facção que controla o tráfico na Providência nas testas dos detidos, antes de deixá-los na outra favela, dominada por uma quadrilha rival.

O delegado Ricardo Dominguez, da 4ª DP (Central), e a promotora Márcia Velasco, responsáveis pelo pedido de prisão do grupo, admitiram a surpresa com o fato de os militares não terem demonstrado arrependimento com o desfecho da história. Para Ricardo e Márcia, os militares sabiam que os jovens seriam mortos. Versão reforçada pelo fato de dois dos acusados viverem em áreas dominadas por traficantes e, com isso, terem conhecimento dos métodos aplicados contra os inimigos.

Formado na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), o tenente, nascido no Espírito Santo, está lotado no 1º Batalhão de Infantaria Motorizada há um ano e meio. Era o sétimo serviço que Vinícius comandava à frente do pelotão na Providência. De acordo com os depoimentos dos militares, o oficial ficou indignado com a decisão do capitão de serviço, que mandou liberar os jovens no sábado. Ao sair da 111ª Companhia de Apoio de Material Bélico, no Santo Cristo, o tenente perguntou aos subordinados se havia nas proximidades um morro dominado por traficantes rivais.

Segundo os militares, a idéia do oficial era aplicar um "corretivo" nos três jovens. Nos depoimentos, os envolvidos dizem que um sargento, morador do Morro do Turano, no Rio Comprido (onde o tráfico é comandado pela mesma facção da Providência), sugeriu levar o grupo para a Mineira. Ao chegar à favela, o sargento Maia Bueno, de 29 anos, desceu do caminhão e seguiu com as mãos para o alto até os traficantes, onde teria pedido que os jovens recebessem um castigo por terem desacatado os militares.

No momento da entrega, um dos jovens ainda tentou fugir, mas foi contido por um dos soldados. Nos depoimentos, os militares disseram que os jovens choravam e pediam pelo amor de Deus para não serem deixados na Mineira. Apesar dos pedidos, o oficial manteve a decisão de entregá-los aos rivais e determinou que ninguém comentasse mais o assunto.

Suspeita de contato prévio com o tráfico

As investigações da polícia até o momento não apontaram ainda para uma "venda" ou qualquer relação entre os 11 militares envolvidos no caso e o tráfico. A prisão temporária, por dez dias, dos acusados foi decretada ontem de madrugada. Eles foram levados para o 1º Batalhão de Polícia do Exército, na Tijuca.

- Não há dúvidas de que eles entregaram os jovens ao Morro da Mineira. Para eles, seria um corretivo contra um desacato, já que o superior deles tinha decidido liberar os rapazes - resumiu o delegado Ricardo Dominguez.

Apesar de as investigações, até o momento, não apontarem ligação dos militares com os traficantes da Mineira, o delegado acrescentou que todas as hipóteses estão em investigação:

- Suspeitamos que houve um contato prévio com o tráfico da Mineira, porque testemunhas dizem que eles entraram muito tranqüilamente. Mas isso ainda não foi confirmado.

Na Mineira, pelo menos dez bandidos espancaram os jovens até de madrugada. A tortura foi comandada pelo chefe do tráfico, Rogério Rios Mosqueira, o Ropinol. As investigações mostram que, após os jovens serem mortos, seus corpos foram jogados num depósito de lixo do Caju, de onde foram levados para o Aterro Sanitário de Gramacho, em Caxias, onde foram encontrados ontem. Informações preliminares do Instituto Médico-Legal (IML) revelam que dois dos jovens tiveram as mãos decepadas. Um deles teve a perna cortada na altura do joelho. Os três apresentavam diversas perfurações de tiros nos pés, nas pernas, no tórax e na cabeça.

Ainda de acordo com a 4ª DP, um dos três jovens mortos tinha antecedentes criminais. David Wilson Florêncio teve passagem na polícia por corrupção de menores e porte de arma. Quando adolescente, Wellington Gonzaga da Costa esteve na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), porque, ao ser abordado pela polícia, recebeu duas ligações em seu celular de dois traficantes da Providência. Já o terceiro jovem morto, Marcos Paulo da Silva, não tinha antecedentes criminais, mas sua mãe teve uma passagem pela polícia por tráfico de drogas.