Título: Aliança mortal com o tráfico
Autor: Moreira, Gabriela ; Neto, Lauro
Fonte: O Globo, 16/06/2008, O globo, p. 8

A GUERRA DO RIO

Onze militares do Exército são acusados de ter "vendido" três jovens a traficantes de favela rival

Gabriela Moreira *, Lauro Neto e Rafael Galdo

O delegado Ricardo Dominguez, da 4ª DP (Central do Brasil), vai pedir à Justiça a prisão temporária, que vale por 30 dias, de 11 militares do Exército, por homicídio. Sete soldados, três sargentos e um oficial são acusados de ter "vendido" a traficantes do Morro da Mineira, no Catumbi, três jovens detidos no Morro da Providência, no Centro, na manhã de sábado. Os corpos de Wellington Gonzaga de Costa, de 19 anos, Marcos Paulo da Silva Correia, de 17, e David Wilson Florêncio, de 24, foram encontrados ontem à tarde, no Aterro Sanitário de Gramacho, em Caxias, por policiais civis. Durante interrogatório, alguns dos militares confessaram ter levado os rapazes para a Mineira, favela controlada por traficantes de uma facção rival à da Providência.

Os três jovens foram abordados por militares na Praça Américo Brum, no alto da Providência, quando chegavam de um baile funk. De lá, foram encaminhados a um quartel do Exército no Santo Cristo, de onde foram levados para a Mineira. No Instituto Médico-Legal (IML) de Caxias, constatou-se que o menor foi executado com dois tiros e os outros dois rapazes, com cerca de 20 cada. A maioria dos disparos foi feita no rosto.

Dominguez passou cerca de seis horas no Comando Militar do Leste (CML) interrogando militares.

- Posso afirmar que militares participaram (do caso), entregando as vítimas a traficantes do Morro da Mineira. Não tenho dúvida nenhuma - afirmou o delegado, após ouvir seis dos dez militares envolvidos no caso.

Segundo o policial, ainda não se sabe se os jovens foram torturados:

- Os corpos estavam enlameados, havia marcas de tiros. Vamos aguardar o trabalho da perícia.

Em nota, o Exército informou que, "na seqüência das investigações realizadas e com o objetivo de melhor apurar em que circunstâncias ocorreram os fatos, o Comando Militar do Leste determinou a instauração de um inquérito policial-militar (IPM), na forma do que está previsto na legislação vigente". De acordo com o coronel Barcelos, da Seção de Comunicação Social do CML, o inquérito tem prazo de conclusão de 40 dias, podendo ser estendido por mais 60. Procurado pelo GLOBO, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, não foi localizado.

Segundo o irmão de um dos soldados mobilizados para ocupar a Providência devido a um projeto de reurbanização (Cimento Social), os militares que estavam até ontem no local foram deslocados para a base móvel na entrada do morro. Para a parte de cima, segundo o parente, foi destacado um novo contingente, vindo de outros batalhões. Ainda de acordo com ele, os soldados estão com pouca munição e alimentação reduzida.

Outros dois menores teriam fugido

Além dos três jovens mortos, dois menores também teriam sido abordados e agredidos pelos militares, mas disseram ter conseguido fugir com a ajuda de moradores da Providência.

- Chegamos (à Providência) em dois táxis, e eu estava no de trás. Quando saí, os soldados nos mandaram levantar a camisa. O Negão (Wellington) perguntou por que e levou um soco na cara. David levou um empurrão. Depois colocaram o grupo num jipe para levar para o quartel - contou um dos jovens, de 17 anos, que, antes de fugir para uma casa na favela, também teria sido agredido pelos militares. - Um deles bateu com o fuzil na minha barriga.

De acordo com a moradora que o salvou, cerca de oito a dez soldados participaram das agressões:

- Eles já chegaram falando: "Levanta a camisa senão vai tomar porrada". E encostaram os jovens na parede com os fuzis. Levaram o grupo para um beco e começou a tortura: chutes e coronhadas, uma violência generalizada. Até tentei puxar o David, mas um soldado jogou o rapaz contra a parede. Um outro menor conseguiu fugir por um beco.

Outra moradora também contou o que viu na favela:

- Eles foram algemados com as mãos para trás e colocados de frente para o muro. Quatro militares revistaram os jovens e quatro apontaram fuzis para as costas deles. Depois, eles foram colocados no jipe, e essa foi a última vez que eu vi os rapazes.

Uma outra moradora que viu a cena disse ter sido agredida também.

- Eles iam atirar nos meninos, mas agarrei o fuzil de um dos soldados e os tiros saíram para o alto. Eles pareciam embriagados e drogados, jogaram gás de pimenta e me agrediram.

Ao saber do caso, uma parente de Wellington ligou para o celular dele e uma voz desconhecida atendeu:

- Já era! Perdeu! Eles foram vendidos para a Mineira.

Marcos Paulo estava na 6ª série do ensino fundamental. David, pai de uma menina de 6 anos, trabalhava como pedreiro e, segundo um parente, começaria hoje a trabalhar no Cimento Social. O estudante Wellington, de acordo com sua mãe, também começaria hoje a atuar como pedreiro na obra da favela.

No IML de Caxias, parentes e amigos dos jovens mortos disseram que, segundo conhecidos na Mineira, as vítimas ficaram numa lixeira no alto do morro, antes de serem levadas para Gramacho. Os corpos chegaram ao IML já em estado de decomposição e, de acordo com a autópsia, todos tinham marcas indicando agressão.

- O Wellington levou muitos tiros no rosto e estava com a cabeça toda cortada. Eu só o identifiquei por uma tatuagem que ele tinha no braço - contou uma prima da vítima.

Segundo um parente de David, o jovem também estava com a face desfigurada. Ele e outros parentes estavam inconformados. As mães dos jovens sequer apareceram no IML, por estarem muito abaladas. Os corpos serão velados hoje no Cemitério São João Batista, em Botafogo, onde acontecerá o enterro às 14h.

COLABORARAM: Arthur Rosa, Flávia Cohen e William Helal Filho

* Do Extra

" Posso afirmar que militares participaram entregando as vítimas à traficantes do Morro da Mineira. Não tenho dúvida nenhuma "

Ricardo Dominguez, delegado

A ocupação do Morro da Providência por militares do Exército começou em dezembro de 2007. O objetivo era acompanhar as obras de reforma de 780 casas, conforme projeto apresentado pelo senador Marcelo Crivella. Apesar dos oficiais terem dito que a missão era apenas social, não faltaram críticas a ações da corporação, assim como denúncias de conluio entre militares e traficantes.

Em abril de 2007, uma escuta telefônica feita pela Polícia Militar, autorizada pela Justiça, descobriu que criminosos acusavam militares de estarem recebendo propina. Numa tentativa de evitar o problema, o comando do Exército decidiu fazer um revezamento diário dos militares que patrulhavam o morro.

Na mesma época, um relatório confidencial do Exército que apurava as denúncias chegou a apontar três ex-militares envolvidos com traficantes: dois soldados e um cabo. Ainda de acordo com o relatório, durante encontro com moradores da comunidade, um interlocutor do senador Marcelo Crivella teria dito a três oficiais que o tráfico daria trégua se seus negócios não fossem atrapalhados. Na época, o senador negou.

As ocorrências da corporação na Providência provocaram o questionamento de magistrados. Das doze prisões por desacatos, pelo menos em duas juízes questionavam se elas deveriam ter sido julgadas pela Justiça Comum ou pela Militar.

Em março de 2006, a Providência também foi ocupada pelo Exército. Eles estavam em busca de dez fuzis e uma pistola roubados de uma unidade. Na missão, houve confronto com traficantes e um jovem de 16 anos foi morto. Foi a ação mais violenta do Exército desde a Rio 92, quando os militares ocuparam as ruas pela primeira vez desde o fim do regime militar.