Título: A ameaça oculta
Autor: Machado, Antônio
Fonte: Correio Braziliense, 14/05/2009, Economia, p. 21

Mudança na caderneta deu o álibi para baixar o IR dos fundos, o obstáculo real à queda da Selic

Por que simplificar o que se pode complicar? Foi o que o governo fez ao passar mais de dois meses discutindo como adequar o cenário de queda da Selic, referencial do rendimento dos papéis da dívida pública emitidos pelo Tesouro, à remuneração fixa de 6,17% ao ano da caderneta de poupança. A questão tinha de ser enfrentada, mas o governo mostrou-se vacilante, transmitindo incerteza ao poupador.

O problema do diferencial competitivo de rendimentos entre uma e outra modalidade é questão antiga, já aconteceu diversas vezes no passado sempre que a taxa líquida do overnight deixou de compensar a inflação. Fundamentalmente, reflete anacronismos de um tempo em que a inflação era endêmica e o governo induzia o direcionamento dos fluxos de recursos via taxa de juros e tributação, numa ponta, e a destinação dos valores captados pela banca, na outra.

O dinheiro aplicado nos fundos é canalizado majoritariamente para os papéis do Tesouro. Os da caderneta, para financiar a construção e venda de imóveis pelo Sistema Financeiro da Habitação. O que não for aplicado na área imobiliária é sugado, obrigatoriamente, pelos papéis da dívida pública. A rolagem dos títulos do Tesouro, assim, é o que preocupa o governo ¿ não bem o inchaço das cadernetas em detrimento dos depósitos em fundos. Essa é a compreensão devida.

A questão é técnica: se papéis da dívida pública formam a grande parte dos ativos dos fundos de renda fixa, que sofrem tributação pelo Imposto de Renda de até 22,5%, conforme o prazo da aplicação, enquanto as cadernetas estão isentas, pagam juros de 0,5% ao mês e o saldo é corrigido pela taxa de referência (TR), o desequilíbrio entre as duas modalidades de investimento é perene.

Com inflação ascendente, levando o Banco Central a inflar a Selic para combatê-la, o problema é disfarçado. A poupança paga ¿pouco¿ vis-à-vis os fundos, nesta situação, mas não há problema: mais de 95% das contas de poupança têm saldo abaixo de R$ 20 mil. No geral, representam disponibilidades de poupadores que buscam segurança e simplicidade. Já o investidor em fundos é mais exigente.

Tesouro é o foco O aplicador em fundos, normalmente, é mais sensível à conjuntura. Muito desse dinheiro é sobra de caixa de empresas. Nada tem a ver com a caderneta. Com a Selic tendendo a menos de 10% ao ano, há o risco, mantida a tributação, de surgir resistência à colocação de títulos pelo Tesouro. Tal problema já ocorreu lá atrás ¿ não pela Selic baixa, que pela primeira vez pode tornar-se realidade, mas pela inflação em disparada. Como efeito, tais casos se equivalem.

A prioridade, de fato, era esticar a atratividade dos fundos de renda fixa, pelo menos enquanto o Tesouro for deficitário, o que exige a emissão contínua de títulos para se financiar, e carregar um caminhão de dívidas para rolar.

Questão de coragem Mas o rendimento fixo da caderneta, em situação de Selic cadente, alguma atração sobre as aplicações hoje em fundos sempre exercerá. Não por acaso ela, que nasceu creditando a remuneração só em base anual, depois sobre o menor saldo a cada trimestre, desde o fim do governo de João Figueiredo passou a destinar 60% dos depósitos aos títulos do Tesouro. À época era a melhor aplicação, mas o governo também não teve coragem de reduzir o juro fixo de 6,17%. Foi mais fácil garfar da casa própria o grosso dos depósitos na poupança.

Omelete de Selic Hoje, outra vez, do ovo se fez a omelete. O governo vai tributar os saldos na caderneta acima de R$ 50 mil, mas isso só de 2010 em diante e se o Congresso aprovar. A mudança é por projeto de lei e cheia de condicionalidades. Vale se a Selic cair abaixo de 10,5%. Quem tem na renda da caderneta seu único custeio estará isento até um valor do saldo aplicado, abaixo de R$ 1 milhão.

Em suma, ninguém poderá dizer que Lula ¿tungou¿ o poupador, como o PPS saiu a berrar. Nem que mima ¿tubarão¿. A mudança é o álibi para reduzir de 22,5% para 15% o IR sobre fundos de renda fixa. E com vigência imediata, pois virá por medida provisória. Espera-se agora que o BC cumpra sua parte neste enredo e desbaste a Selic.

Depois de tanto barulho seria feio demais não podar a Selic, hoje a 10,25%, de 1 a 1,5 ponto percentual na reunião do Copom de 10 de junho, um dia após o anúncio do PIB do 1º trimestre, possivelmente indicando retração de 2% a 3% sobre o período trimestral anterior. Ganha força a aposta de que a Selic chegará ao fim do ano a 8,25%.

Um ninho de vespa A queda livre do overnight é possibilidade real. Não se vê nenhum risco à inflação enquanto a economia estiver anêmica, e irá assim até meados de 2010. Obstáculos são o desequilíbrio entre fundos e cadernetas e a tributação das aplicações de curto prazo, ambos já expostos pela coluna muito antes de o governo acordar para o tema.

A solução sugerida foi a mesma adotada: mudar a incidência do IR, não por ser a melhor. É só a mais simples, dada a falta de ânimo do governo para qualquer coisa polêmica. O juro fixo da caderneta é um nó a desatar, mas problemas mesmo são o giro da dívida e sua relação com o sistema financeiro. Um ninho de vespa até para Lula.