Título: As Marcas da tortura
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Fonte: O Globo, 19/06/2008, O Globo, p. 36

Associação de médicos analisa ex-presos dos EUA e acusa governo Bush de crimes de guerra

WASHINGTON

Uma organização de médicos americanos reuniu, pela primeira vez, indícios físicos e psicológicos de que ex-prisioneiros de centros de detenção americanos criados após o 11 de Setembro foram torturados. Os resultados foram conseguidos depois de baterias de testes em 11 ex-detentos de prisões em Guantánamo, em Cuba; Abu Ghraib, no Iraque; e de bases secretas da CIA em outros países. O relatório não diz quando os presos foram examinados.

Os dados foram levantados pela organização Médicos pelos Direitos Humanos, baseada no estado de Massachusetts. Todos os ex-prisioneiros, que passaram por dois dias de testes médicos, foram libertados pelos americanos sem qualquer acusação.

¿As avaliações que fizemos fornecem evidências de violação de leis criminais que proíbem a tortura e o cometimento de crimes de guerra por soldados americanos¿, diz o relatório, de 121 páginas, divulgado ontem.

¿ Encontramos evidências claras de tortura e de abusos físicos e mentais, que, muitas vezes, provocaram um sofrimento prolongado ¿ disse o médico Allen Keller, um dos especialistas que participaram dos testes.

As marcas psicológicas deixadas pelo período na prisão foram ressaltadas pela organização.

¿ A dor devido aos espancamentos e às posições estressantes, incluindo suspensão, combinada com sentimentos de humilhação e vergonha foi tão forte que levou a sete dos pesquisados a pensar em se suicidar apesar das proibições a este tipo de atitude na religião muçulmana ¿ disse Leonard Rubenstein, presidente dos Médicos pelos Direitos Humanos.

Entre as formas de tortura encontradas estão espancamento, isolamento por grandes períodos de tempo, choques elétricos, longos períodos sem possibilidade de dormir, ameaças de violência contra o detento e seus parentes, humilhação e abuso sexual.

Quatro dos homens avaliados foram presos no Afeganistão, ou levados para lá, entre o fim de 2001 e o início de 2003, e posteriormente transferidos para a prisão de Guantánamo, onde foram mantidos por um período médio de três anos. Os outros sete ex-detentos foram detidos no Iraque em 2003 e liberados um ano depois.

Efeitos psicológicos quatro anos depois

Resumos das torturas sofridas pelos ex-detentos foram descritos no relatório. Um homem chamado Amir foi colocado numa sala e forçado a deitar com o rosto numa poça de urina enquanto era chutado. Depois foi sodomizado com um cabo de vassoura e forçado a uivar como um cachorro enquanto um soldado urinava sobre ele. Após um soldado pisar em sua região genital ele desmaiou. Amir ainda sofre com sintomas físicos e psicológicos, quatro anos após sua libertação.

O relatório foi considerado tão convincente pelo general Antonio Taguba ¿ apontado pelo governo americano para analisar os abusos de detentos cometidos por militares dos EUA em Abu Ghraib em 2004 ¿ que ele aceitou fazer o prefácio da publicação.

¿Depois de anos de revelações e investigações do governo, reportagens na imprensa, e relatórios de organizações de direitos humanos, não há mais qualquer dúvida de que o atual governo cometeu crimes de guerra. A única questão que ainda precisa ser respondida é se quem deu as ordens para o uso de tortura será responsabilizado¿, diz Taguba no prefácio.

O relatório frisa que, por só ter avaliado 11 pessoas, ¿não é possível afirmar que todos os prisioneiros sob a custódia dos EUA tiveram o mesmo tratamento¿, mas que, ao se somar também outras investigações, inclusive governamentais, sobre abusos, ¿é razoável concluir que estes detentos não foram os únicos a sofrerem abusos, mas representam um número muito maior de prisioneiros submetidos a tortura e maus-tratos¿. O Pentágono respondeu ao relatório, dizendo que ele tem limitações. Segundo o porta-voz Bryan Whitman, os médicos não tinham o histórico de saúde dos ex-detentos antes da prisão ¿ dado que faz parte do relatório da ONG.