Título: Sai o Exército, entra a polícia na Providência
Autor: Cássia, Cristiane de ; Araújo, Vera
Fonte: O Globo, 23/06/2008, O Globo, p. 9
Patrulhamento da favela é reforçado por PMs de dois batalhões, enquanto militares continuam em retirada
Cristiane de Cássia e Vera Araújo
À medida que o Exército se retira do Morro da Providência - onde, há nove dias, militares seqüestraram três jovens e os entregaram a bandidos do rival Morro da Mineira, o que culminou na morte deles -, a Polícia Militar aumenta o efetivo na favela. Aos homens do Comando de Policiamento em Áreas Especiais (Cpae) que já faziam patrulhamento na região somaram-se mais policiais, antes lotados na Vila Cruzeiro ou em outras favelas. Nos acessos à comunidade, o policiamento foi reforçado pelo Batalhão de Choque, principalmente da Ronda Ostensiva Nazareth Cerqueira (Ronac).
Apesar do reforço da PM no patrulhamento da Providência, não houve problemas nem para os policiais nem para os soldados do Exército remanescentes. O clima foi de aparente calma no morro, durante todo o fim de semana.
Os militares do Exército vão ficar na Providência pelo menos até quinta-feira, prazo dado pela Justiça para o governo federal apresentar uma solução definitiva sobre as obras do Projeto Cimento Social e a presença das Forças Armadas no local. A tropa está mais concentrada no local das obras, junto à Rua Barão da Gamboa, como prevê determinação da Justiça Federal. Mas há também pequenos grupos no acesso à Vila Portuária e no local conhecido como Cruzeiro, no alto do morro.
Os moradores continuam questionando a presença do Exército no alto da favela, distante das obras. Mas a alegação do oficial responsável pelas tropas na Providência no fim de semana, coronel Silva Júnior, é que os militares alocados ali estão dando segurança ao grupo que trabalha no canteiro.
Testemunha: "Voltaram dizendo: já é, já vendemos"
Em entrevista exibida ontem no "Fantástico", da TV Globo, uma mulher que conseguiu salvar um jovem das mãos dos militares afirmou que a entrega das vítimas a traficantes do Morro da Mineira foi premeditada pelos soldados.
- Vamos levar, vamos levar, vamos pra (sic) Mineira. Quando eles voltaram, já voltaram dizendo: já é, já vendemos - contou. - No dia seguinte a gente já fica sabendo que foi por R$60 mil. Que conivência é essa, que homens fardados se unem a traficantes de outra favela? Usam uma farda que pra nós na nossa favela demonstrava alguma coisa e hoje pra nós não é nada.
O julgamento dos 11 militares acusados de entregar os jovens aos traficantes do Morro da Mineira ainda depende de acordo entre as justiças estadual, federal e militar. Como os acusados são servidores federais em serviço, a tendência é que o caso seja julgado em âmbito federal - o que é defendido pelo Ministério Público Federal -, embora já exista processo no 3º Tribunal do Júri estadual.
Se houver conflito de competência entre as esferas, o processo será apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para piorar a situação, a defesa dos militares também pode suscitar o conflito, alegando que eles estavam exercendo função militar - o que demandaria julgamento pela Justiça Militar. Neste caso, o conflito seria resolvido pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Atuação do Exército não seguiu a Constituição
A Constituição concede poder de polícia às Forças Armadas somente em casos excepcionais, como a garantia da lei e da ordem. Mas, para que isso ocorra, há necessidade de intervenção federal, decretada pelo presidente e comunicada ao Congresso em 24 horas. No caso da Providência, foi assinado apenas um acordo de cooperação técnico-científico, no qual o Departamento de Engenharia e Construção do Exército ficaria encarregado do Projeto Cimento Social, para a troca de telhados e pintura de casas.
Outro documento, confidencial e intitulado "regras de engajamento", define a conduta da tropa na comunidade. Nele fica claro que o Exército fazia o patrulhamento, contrariando nota oficial da corporação, de 20 de junho, segundo a qual os militares faziam apenas a segurança do canteiro.