Título: Ruth Cardoso, a intelectual solidária
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Fonte: O Globo, 25/06/2008, O País, p. 12

Antropóloga reinventou programas sociais e extinguiu LBA no governo do marido

SÃO PAULO, BRASÍLIA e RIO

Aantropóloga Ruth Corrêa Leite Cardoso transformou a ação social do país nos oito anos em que esteve no poder ao lado do marido, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, seu companheiro por 55 anos, decretando o fim da LBA (Legião Brasileira de Assistência), entidade assistencialista, tradicionalmente presidida por primeiras-damas. Ela criou o Comunidade Solidária, projeto social inovador e ambicioso, e imprimiu estilo inovador e discreto ao cargo de primeira-dama.

Paulista de Araraquara, onde nasceu há 77 anos, Ruth Cardoso era doutora em antropologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Fez pós-doutorado na Universidade de Columbia em Nova York e também foi professora em universidades americanas e inglesas. O saber foi instrumento para a causa do combate à pobreza.

Entre os programas sociais desenvolvidos pela ex-primeira-dama na gestão Fernando Henrique estavam o Alfabetização Solidária, que chegou a alfabetizar mais de 2,5 milhões de jovens nos municípios mais pobres do país, o Universidade Solidária, que mobilizava estudantes e professores universitários para ações de desenvolvimento social, e o Capacitação Solidária, que treinou mais de 100 mil jovens para o mercado de trabalho nas grandes regiões metropolitanas.

Ao deixar Brasília, manteve a bandeira: "Quero manter as brigas que comecei", disse então dona Ruth.

A atuação social continuou, fora do governo: ela se dedicou ao comando da ONG Comunitas, responsável por programas sociais e de voluntariado.

Com Fernando Henrique, dona Ruth teve três filhos: Luciana, Beatriz e Paulo Henrique. Deixa também cinco netos.

Ela foi vigilante, dentro e fora do governo. Respeitada até por adversários políticos, a antropóloga que detestava ser chamada de primeira-dama se transformou em uma crítica da política social do governo Luiz Inácio Lula da Silva, que considerava assistencialista. Em 1994, antes da posse do marido, no primeiro mandato, comprou briga com o PFL, maior aliado na campanha de Fernando Henrique, ao afirmar: "O PFL tem Antonio Carlos (Magalhães), mas tem Gustavo Krause e Reinhold Stephanes". Na época, Fernando Henrique considerou a frase "infeliz" e pediu desculpas formais a ACM. Ela também chamou o PFL de "fisiológico" e disse que o partido mudara "não porque é bonzinho, mas porque perdeu poder".

Festa do PSDB foi cancelada

Na quinta-feira, a ex-primeira-dama se internou no hospital Sírio Libanês, em São Paulo, para investigar as causas das dores que vinha sentindo no peito. Os exames indicaram a necessidade de um cateterismo, que foi realizado na segunda-feira à tarde no hospital da Unifesp. Dona Ruth, que teve alta às 21h do mesmo dia, morreu ontem em casa, às 20h40m. Ela conversava com o filho quando se sentiu mal. O ex-presidente havia saído para uma palestra e voltou às pressas. Por volta das 21h30m, chegaram ao apartamento do ex-presidente o governador José Serra, sua mulher, Mônica Serra.

A notícia, dada ontem pouco antes das 21h pelo presidente nacional do PSDB, Sérgio Guerra, interrompeu um momento de festa dos tucanos. As comemorações pelos 20 anos do partido, que aconteceriam hoje no plenário do Senado, em sessão solene, foram imediatamente suspensas. Hoje de manhã, uma caravana de políticos tucanos irá para São Paulo, onde a ex-primeira-dama será velada. Está prevista a ida do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O presidente lamentou a morte da ex-primeira-dama, por meio de nota. Ele disse que recebeu com pesar a notícia. "É difícil acreditar que aquela intelectual determinada que conheci muitas décadas atrás, com convicções firmes, gestos nobres e ao mesmo tempo sensibilidade para o drama da desigualdade social, tenha nos deixado. É uma grande perda para o país".

O governador José Serra decretou luto oficial de três dias no estado: "A Ruth era uma pessoa muito especial, para sua família, para seus amigos, para nosso país. Um exemplo de dignidade, delicadeza, inteligência e carinho pelas pessoas. É uma dor imensa a que sinto neste momento. Nossa, como vai fazer falta...", disse, em nota.

O governador de Minas, Aécio Neves (PSDB), afirmou, também em nota, que a importância de dona Ruth transcende partido ou governo. "É uma mulher do Brasil. É nessa dimensão maior, histórica e afetiva, que ela deve ser lembrada, reconhecida e respeitada por todos nós."

O ministro das Relações Institucionais, José Múcio Monteiro, destacou a elegância da ex-primeira-dama:

- Antes de tudo, uma dama o Brasil perde. Uma pessoa que serviu com elegância e distinção ao país.

Sérgio Guerra destacou a atuação da antropóloga no meio acadêmico e também na presidência do Comunidade Solidária:

- É uma grande perda para o país, uma pessoa honrada, discreta, uma grande luz. Somos solidários ao presidente Fernando Henrique e a toda sua família. Era reconhecida por seu trabalho tanto por integrantes do PSDB quanto de outras tendências partidárias -- disse Guerra.

O antropólogo Gilberto Velho se disse surpreso com a notícia da morte da ex-primeira-dama. Ela foi orientadora da tese de doutorado do antropólogo em 1975. Segundo ele, Ruth Cardoso era uma pessoa séria, competente e que jamais teve uma posição hostil. Gilberto Velho contou que conversou com a ex-orientadora há cerca de um mês:

- Ruth era uma grande amiga. Além de uma grande profissional, competente e séria. Uma pessoa muito aberta para os temas do mundo. No ofício de primeira-dama sempre foi muito honesta.

Ministro da Justiça na gestão Fernando Henrique, Nelson Jobim, hoje ministro da Defesa do governo Lula, destacou o temperamento discreto e firme da ex-primeira-dama:

- De inteligência privilegiada, sabia conciliar atitudes incisivas e diretas com uma ternura peculiar.

O presidente do Instituto Pereira Passos, Sérgio Besserman, que conheceu a ex-primeira-dama quando foi diretor do BNDES e presidente do IBGE, ressaltou seu engajamento para tratar dos problemas sociais:

- O caráter de um povo é feito da trajetória de pessoas como dona Ruth. Ela sempre atuou de forma engajada valorizando ao máximo o conhecimento na perspectiva de uma transformação para melhor.

O antropólogo Roberto DaMatta conviveu com dona Ruth desde a década de 60, quando participava de reuniões acadêmicas em São Paulo:

- Foi uma grande antropóloga, excelente professora, extremamente dedicada. Guardo dela excelente memória. Seja no palácio, em universidade ou em viagem, ela era sempre a mesma pessoa, amável e paciente.

Segundo nota divulgada pelos médicos Valter C. Lima, Edson Stefannini e Artur Beltrame Ribeiro, da Unifesp, dona Ruth sofreu uma arritmia grave: "A senhora Ruth Cardoso, de 77 anos, faleceu subitamente hoje às 20h40m em sua residência. Há um dia ela foi submetida a um cateterismo cardíaco que revelou doenças coronárias de extensão similar à doença já revelada em dois cateterismos prévios, em 2004 e 2006. Atribuímos a morte à arritmia grave, decorrente da doença coronariana". O velório acontece na Sala São Paulo, no Centro, a partir das 10h. A família aguarda o retorno da filha Beatriz, que se encontrava na Europa, para o enterro, amanhã, às 10h, no Cemitério da Consolação.