Título: A ineficiência do Estado é lucrativa
Autor: Lopes, Rodrigo
Fonte: O Globo, 22/06/2008, O País, p. 4

Cientista diz que centros sociais refletem a forma como a política é feita.

Na consolidação dos centros sociais como moeda política, os parlamentares não estão sozinhos. O cientista política da USP Humberto Dantas, do Movimento Voto Consciente, alerta que a submissão de câmaras e assembléias aos desejos do Executivo, combinada com a ineficiência, impede que vereadores e deputados cumpram seu papel. Eles acabam empurrados para as funções executivas, tornando-se heróis em seus currais.

Os centros sociais ajudam a democracia ou são apenas ação populista?

HUMBERTO DANTAS: Os centros sociais e outras organizações fundadas ou mantidas por políticos refletem a forma como a política é feita no país. O coronel de bota, suspensório, bigode e barriga abre espaço para dois novos tipos de senhores. Primeiramente o mais perigoso: o coronel da mídia. Em claro desafio à Constituição, centenas de parlamentares usam suas redes de rádio e TV para se perpetuar no poder. A outra situação guarda relação direta com a criação dos centros de atendimento social. Os políticos notam que a ação benevolente pode ser transformada em voto num país que não tem política pública consolidada e sim políticas de governo, numa tradição de alternância de ações que gera a mais perigosa das inimigas da democracia: a instabilidade das leis e das políticas públicas.

Como o vereador ocupa esse vazio de poder?

HUMBERTO: Seu objetivo é se transformar num chefe local, num líder reconhecido como o responsável por direitos. Para ocupar a lacuna que o Estado deixou, ele precisa ofertar razão de ser ao seu mandato. O poder Legislativo legisla com baixa eficiência no Brasil. Além disso, graças ao poder de barganha do Executivo de qualquer esfera, os legisladores se transformam em atendentes dos desejos de prefeitos, governadores e do presidente. Executivos legislam com mais freqüência e eficiência. Os vereadores, por vezes, sequer conhecem as regras sob as quais trabalham. Em Itapecerica da Serra (SP), por exemplo, a Câmara é tão submissa aos desejos do prefeito que num julgamento político rejeitou as contas do prefeito passado sem quórum exigido pelo regimento da Câmara, um descaso completo.

Isso significa que o Legislativo faz política às custas dos desejos do Executivo?

HUMBERTO: Dentro deste quadro, resta então fazer a única coisa que um político parece fadado a fazer no Brasil: executar. Por uma razão de sobrevivência, pautada em ética discutível e distorção de suas funções, acaba se tornando um despachante de demandas centralizadas em centros sociais que se revertem em votação e moeda em eleições. A oferta de direitos vitais, sobretudo na área de assistência social, dignidade, emprego (ou capacitação para ele), saúde (questões básicas) e educação é o que o perpetua no poder. Nesse caso, a ausência do Estado se torna interessante. Sem políticas públicas, o político é o herói reconhecido de seu curral. Qual seria, nesse caso, o interesse no desenvolvimento e na prosperidade universal?

Mas quem sustenta tais obras e atividades?

HUMBERTO: Na imensa maioria das vezes, o próprio poder público. É claro que existem doações de pessoas físicas e jurídicas privadas, mas é do orçamento público que vem parte significativa desses recursos. E não só do município. Vereadores criam redes de interlocução com parlamentares estaduais e federais. O fato de as eleições serem intercaladas permite que o vereador vire peça chave no processo de captação de votos de outras esferas. É nesse momento que eles colocam à disposição dos deputados suas máquinas de fazer voto. E recebem como contrapartida fatias de recursos garantidos em emendas nos orçamentos estaduais e federais. Quando não fazem dessa maneira, os vereadores costumam procurar os prefeitos para pedidos de questões específicas para seus bairros. Muitos, inclusive, conseguem atrelar suas obras sociais aos investimentos da prefeitura. E para piorar, quando você conversa com um desses políticos eles alegam: mas isso aqui é pura caridade, só me dá prejuízo.

Há denúncias sobre abusos na captação de votos relacionadas a vereadores e seus centros sociais?

HUMBERTO: Sabemos, pelo movimento Voto Consciente, de diversos casos escabrosos de total controle do Executivo sobre o Legislativo. Em algumas cidades, onde as reuniões da Câmara são semanais, as conversas começam na sala do prefeito. As seções, nesse caso, são meros espetáculos de representação, protagonizados por uma situação comprada e uma oposição minúscula e pouco poderosa. Destaca-se, a despeito de todas essas considerações, que muitos centros sociais fazem um bom trabalho. Mas, como você bem destacou, sem a fiscalização e o rigor do poder público, que teria razões de sobra para fiscalizar tais instituições.

Mas o que fazer diante desse quadro?

HUMBERTO: Pouca coisa. Só se impedirmos as doações e a destinação de recursos públicos. Caso contrário, não teremos alternativa. E, nesse caso, poderemos colocar milhares em situação ainda mais miserável. A ineficiência do Estado é lucrativa. E viva o país da barbárie, onde a desgraça de milhares é a consagração, por esses desgraçados, de uma classe cada vez mais entendida como corrupta.