Título: Moderno é pagar direito!
Autor: Gil, Gilberto
Fonte: O Globo, 22/06/2008, O País, p. 17

O Direito Autoral do compositor brasileiro está, como sempre, sob intenso bombardeio. Seu maior inimigo: a inadimplência que se alastra coberta pela impunidade e pela ilegalidade. Cinqüenta por cento das rádios não pagam Direito Autoral. Grandes empresas do audiovisual se negam a pagar ou depositam na Justiça valores muito aquém do justo, embora a música seja absolutamente imprescindível à sua programação. Um poderoso lobby trabalha diuturnamente para que o cinema não pague Direito Autoral de música. Centenas de casas de show que vivem exclusivamente de música se recusam a pagar e algumas ainda recebem o auxílio luxuoso de estatais! O leitor já imaginou uma churrascaria que não pagasse a carne? A moderna e charmosa MTV (esse M aí é de música) paga Direito Autoral em todo o mundo, inclusive na nossa vizinha Argentina, mas, no Brasil, nem pensar. Políticos donos de mídia, de vereadores a senadores da República, labutam noite e dia contra a remuneração do compositor brasileiro. Não tenho dúvidas de que, enquanto escrevo estas linhas, um político em alguma região do Brasil está propondo uma CPI contra ¿esse tal de Ecad¿. O Ministério da Cultura ocupado por Gilberto Gil, um extraordinário artista, além de não se posicionar claramente contra essa inadimplência acintosa, ainda nos ameaça com uma ¿agência reguladora¿, velho pleito petista, exatamente quando as tais agências demonstram incompetência e aparelhamento partidário, caso da aviação civil, da telefonia etc. O ministro também tem defendido a ¿flexibilização¿ da Lei do Direito Autoral, e a liberação irrestrita das obras, sem explicar, porém, como seus colegas vão comer, morar, educar seus filhos.

Nossa Lei do Direito Autoral (9610-98) é resultado de um trabalho coletivo de representantes da classe, advogados, especialistas e políticos. O último passo desse processo para aprovação no Congresso Nacional foi a visita ao seu presidente Antonio Carlos Magalhães, em sua casa em Salvador. Lá chegando (Fernando Brant, Caetano, Gil, Carlinhos Brown, Ronaldo Bastos, Marcos Vinícius e eu) presenciamos um fato exemplar da guerra suja que cerca a atuação dos inimigos do direito autoral: o texto que o senador começou a ler, diante do nosso espanto e também do senador, era outro completamente antagônico ao que defendíamos. Até hoje não sabemos o autor do fracassado golpe. Substituído o texto, foi feita a leitura da Lei, depois aprovada pelo Congresso.

Um ponto fundamental da Lei e um dos mais discutidos, é a obrigatoriedade de um único órgão de recebimento e distribuição dos direitos de execução de música, o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição). A razão é simples: a existência de várias sociedades arrecadadoras e distribuidoras, como era antes, praticamente impossibilitava o processo e era o argumento mais usado pelos usuários: ¿Não sabemos a quem pagar¿. Agora sabem. O Ecad tem problemas, mas quem é do ramo há mais tempo sabe que já foi infinitamente pior. Pode melhorar e essa é uma tarefa exclusivamente dos compositores e músicos brasileiros. Herdamos dos pioneiros, como Chiquinha Gonzaga, Caymmi, Ataulfo, Mario Lago, Humberto Teixeira, Braguinha e tantos outros a obrigação de lutar para que o artista da música brasileira seja respeitado. Esta música é a face mais brilhante e vitoriosa de nossa cultura, permite a ascensão social de milhares, confere dignidade e cidadania, além de movimentar uma poderosa engrenagem econômica e financeira.

ABEL SILVA (abelsilvarj@gmail.com) é poeta e compositor, diretor da União Brasileira de Compositores-UBC

Profissão de risco

Nei Lopes

Há uns 20 anos, ainda sob a antiga Lei Autoral, a concentração de renda na música brasileira já era escandalosa. Na época, a partir de relatórios divulgados pelo Ecad, via-se que a arrecadação anual, conjunta, dos 11 maiores autores de nossa canção de então não chegava ao que recebia apenas um dos grupos multinacionais (gravadora e editora) no país. Mudou a lei, mas a maior parte da renda de nossos direitos continua indo para as mãos das ¿multis¿. Mas isso sem ilegalidade ou ilicitude! É que, mesmo consagrando o ¿poder da criação¿ como um atributo exclusivo da pessoa física, a lei equipara a esse criador a pessoa jurídica (gravadora ou editora) a quem ele ceder os direitos sobre sua obra.

O compositor cria a música e, na gravação, assina um contrato no qual a editora vira uma espécie de ¿sócia¿, recebendo em torno de 25% sobre o que a obra render. Aí acontece a absurda concentração de renda que faz com que, do bolo distribuído, o criador de música, mesmo quando bem aquinhoado, só tenha direito ao farelo.

Cessão de direitos faz quem quer, gosta ou precisa! Mas o grande caso é que ela, além de transferir o direito do criador para a grande empresa, transfere também o poder de decisão. E aí está a base da problemática da gestão do ¿famigerado¿ Ecad, no qual autores e empresas são representados por suas respectivas associações ¿ o voto de cada uma valendo, porém, segundo o peso de sua arrecadação.

Como as antigas ¿sociedades arrecadadoras¿, o Ecad, talvez por ser um órgão que cobra, tem má fama, sim! Mas, nos tempos e no país em que vivemos, isso não é apanágio de poucas instituições. E acontece que esse bureau, unificando a cobrança e a distribuição dos nossos direitos autorais e recebendo, das sociedades gestoras que o compõem, para alimentação de suas unidades de processamento, dados bons e valiosos, é hoje parte de um sistema importante. Muito melhor, operacionalmente, que o existente antes de sua criação, em 1973.

A má imagem do Ecad e o desconhecimento da sistemática de seu funcionamento geraram uma cultura de estímulo à inadimplência, prejudicando a todos. Hoje, cerca de 40% de emissoras de radiodifusão se negam a pagar direitos sobre as músicas que tocam. E esse ¿caldo de cultura¿ chega também a inúmeros projetos legislativos, criados para eximir do cumprimento da legislação autoral os que utilizam publicamente nossas obras. Por essas e outras é que a criação da rica música brasileira ¿ que deveria ser uma atividade de ricos ¿ é, cada vez mais, uma profissão de risco.

NEI LOPES é compositor e escritor e da diretoria da A.M.A.R.