Título: Direito Autoral no Brasil hoje
Autor: Gil, Gilberto
Fonte: O Globo, 22/06/2008, O País, p. 17

Dez anos se passaram desde a última alteração da Lei de Direito Autoral no Brasil. Desde então transformações radicais se deram nas formas como as obras culturais são usufruídas pelo público, basicamente devido ao avanço tecnológico no ambiente digital, que agravou desequilíbrios já existentes na Lei. Várias manifestações que tenho recebido fizeram-me crer que chegou o momento de consultar a sociedade, por meio do Fórum Nacional de Direito Autoral, que terá nova etapa nos dias 30 e 31 de julho, no Rio de Janeiro, com a realização do seminário A Defesa do Direito Autoral: Gestão Coletiva e Papel do Estado. O fórum buscará responder aos anseios da população brasileira, em seus diversos grupos constituídos, a respeito do assunto.

Tal consulta não significa que não tenhamos um mapeamento prévio das imperfeições da Lei. Minha concepção inicial é de que precisamos alterar a Lei para que ela seja um instrumento efetivo de incentivo à criação, ao mesmo tempo em que permita a sociedade usufruir dessas criações sem deixar de dar o devido reconhecimento ao autor e o retorno a quem nele investe. Buscamos o restabelecimento de equilíbrios ausentes em nosso quadro atual: de um lado, equilíbrio entre o autor, que é, em última instância, o motivo da Lei, e o investidor, que promove e divulga a obra. De outro, equilíbrio entre quem consome obras protegidas e o titular dos direitos.

Temos algumas idéias prévias a respeito de como restabelecer tais equilíbrios, que são fruto da série de reclamações que o ministério recebe a respeito do formato atual da Lei e de estudos comparativos com legislações de outros países. Elas passam por três pontos principais: 1) redefinir o papel do Estado na área autoral: o Brasil é um dos raríssimos casos no mundo em que o Estado não possui qualquer papel na seara autoral, e nem há, dentro do Estado, por exemplo, qualquer instância de mediação e arbitragem para resolver conflitos de interesses na área, aliviando a sobrecarga do poder Judiciário; 2) repensar o capítulo de limitações de nossa Lei, no qual o desequilíbrio é marcante, não prevendo, entre outros, o acesso de várias categorias de deficientes às obras protegidas, ou a cópia para uso privado, caso que atinge principalmente os cursos universitários; 3) fazer com que os autores retomem o controle sobre as utilizações de suas obras, pois na legislação atual é permitida a celebração de contratos com cláusulas de cessão e transferência total e definitiva de direitos, prática imposta pelo mercado e que prejudica os autores quanto à gestão na utilização futura de suas criações.

Seria inadequado, no entanto, consolidar quaisquer idéias iniciais sem partir para um processo mais amplo de consulta aos grupos da sociedade interessados no tema. Assim, o Ministério da Cultura lançou o Fórum Nacional de Direitos Autorais, no qual esperamos contar com ampla participação da sociedade.

Há seis anos à frente do ministério da Cultura, o cantor e compositor Gilberto Gil tem desagrado seus pares, que pedem uma defesa mais firme do Direito Autoral. Com a queda da venda de CDs e a inadimplência de muitos usuários de música, compositores, principalmente aqueles que não contam com a receita de shows, amargam perdas em seus rendimentos.

No momento em que as ruas do Rio são inundadas por anúncios do CD "Banda larga cordel" - publicidade que, segundo informa a Warner, é paga pelo selo de Gil, Geléia Geral, sócio da multinacional em seu novo disco -, dois compositores, também diretores de sociedades de músicos, Abel Silva (da Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes/A.M.A.R.) e Nei Lopes (da União Brasileira de Compositores/UBC), retomam o debate sobre o Direito Autoral. A pedido da Logo, Gilberto Gil - que, no momento, faz mais uma turnê internacional, agora para promover nos EUA, "Banda larga cordel" - defende a sua gestão e anuncia mais uma edição do Fórum Nacional de Direito Autoral. Marcado para os dias 30 e 31 de julho, no Rio, é, segundo o ministro, o local adequado para uma revisão da Lei, que necessitaria de ajustes para acompanhar os avanços tecnológicos. (Antônio Carlos Miguel)

Moderno é pagar direito!

Abel Silva

O direito autoral do compositor brasileiro está, como sempre, sob intenso bombardeio Seu maior inimigo: a inadimplência que se alastra coberta pela impunidade e pela ilegalidade. Cinqüenta por cento das rádios não pagam direito autoral. Grandes empresas do audiovisual se negam a pagar ou depositam na justiça valores muito aquém do justo embora a música seja absolutamente imprescindível à sua programação. Um poderoso lobby trabalha diuturnamente para que o cinema não pague direito autoral de música. Centenas de casas de show que vivem exclusivamente de música se recusam a pagar e algumas ainda recebem o auxílio luxuoso de estatais! O leitor já imaginou uma churrascaria que não pagasse a carne? A moderna e charmosa MTV (esse M aí é de música) paga direito autoral em todo o mundo inclusive na nossa vizinha Argentina, mas no Brasil nem pensar. Políticos donos de mídia, de vereadores a senadores da República, labutam noite e dia contra a remuneração do compositor brasileiro. Não tenho dúvidas de que, enquanto escrevo estas linhas, um político em alguma região do Brasil está propondo uma CPI contra "esse tal de ECAD". O ministério da Cultura ocupado por Gilberto Gil, um extraordinário artista, além de não se posicionar claramente contra essa inadimplência acintosa, ainda nos ameaça com uma "agência reguladora", velho pleito petista, exatamente quando as tais agências demonstram incompetência e aparelhamento partidário, caso da aviação civil, da telefonia etc. O Ministro também tem defendido a "flexibilização" da Lei do Direito Autoral, e a liberação irrestrita das obras sem explicar porém como seus colegas vão comer, morar, educar seus filhos.

Nossa Lei do Direito Autoral (9610-98) é resultado de um trabalho coletivo de representantes da classe, advogados, especialistas e políticos. O último passo desse processo para aprovação no Congresso Nacional foi a visita ao seu Presidente Antonio Carlos Magalhães, em sua casa em Salvador.. Lá chegando (Fernando Brant, Caetano, Gil, Carlinhos Brown, Ronaldo Bastos, Marcos Vinícius e eu) presenciamos um fato exemplar da guerra suja que cerca a atuação dos inimigos do direito autoral: o texto que o senador começou a ler, diante do nosso espanto e também do senador, era outro completamente antagônico ao que defendíamos. Até hoje não sabemos o autor do fracassado golpe. Substituído o texto, foi feita a leitura da Lei, depois aprovada pelo Congresso.

Um ponto fundamental da Lei e um dos mais discutidos, é a obrigatoriedade de um único órgão de recebimento e distribuição dos direitos de execução de música, o ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição). A razão é simples: várias sociedades arrecadadoras e distribuidoras, como era antes, praticamente impossibilitavam o processo e era o argumento mais usado pelos usuários: "não sabemos a quem pagar". Agora sabem. O ECAD tem problemas, mas quem é do ramo há mais tempo sabe que já foi infinitamente pior. Pode melhorar e essa é uma tarefa exclusivamente dos compositores e músicos brasileiros. Herdamos dos pioneiros, como Chiquinha Gonzaga, Caymmi, Ataulfo, Mario Lago, Humberto Teixeira, Braguinha e tantos outros a obrigação de lutar para que o artista da música brasileira seja respeitado. Esta música é a face mais brilhante e vitoriosa de nossa cultura, permite a ascensão social de milhares, confere dignidade e cidadania, além de movimentar uma poderosa engrenagem econômica e financeira.

ABEL SILVA (abelsilvarj@gmail.com) é poeta e compositor, diretor da União Brasileira de Compositores-UBC

CADÊ

O DIREITO

AUTORAL?

GILDIZQUEÉHORADEMUDARALEI;

ENQUANTOOSCOMPOSITORESABELSILVAENEI LOPES

PEDEMQUEREGRASATUAISSEJAMDEVIDAMENTECUMPRIDAS

Profissão de risco

Nei Lopes

Há uns 20 anos, ainda sob a antiga Lei Autoral, a concentração de renda na música brasileira já era escandalosa. Na época, a partir de relatórios divulgados pelo ECAD, via-se que, a arrecadação anual, conjunta, dos 11 maiores autores de nossa canção de então, não chegava ao que recebia apenas um dos grupos multinacionais (gravadora e editora) então no país. Mudou a Lei, mas a maior parte da renda de nossos direitos continua indo para as mãos das "multis". Mas isso, sem ilegalidade ou ilicitude! É que, mesmo consagrando o "poder da criação" como um atributo exclusivo da pessoa física, a Lei equipara, a esse criador, a pessoa jurídica (gravadora ou editora) a quem ele ceder os direitos sobre sua obra.

O compositor cria a música e, na gravação, assina um contrato no qual a editora vira uma espécie de "sócia", recebendo em torno de 25% sobre o que a obra render. Aí acontece a absurda concentração de renda que faz com que, do bolo distribuído, o criador de música, mesmo quando bem aquinhoado, só tenha direito ao farelo.

Cessão de direitos, faz quem quer, gosta ou precisa! Mas o grande caso é que ela, além de transferir o direito do criador para a grande empresa, transfere também o poder de decisão. E aí está a base da problemática da gestão do "famigerado" ECAD, no qual autores e empresas são representados por suas respectivas associações - o voto de cada uma valendo, porém, segundo o peso de sua arrecadação.

Como as antigas "sociedades arrecadadoras", o ECAD, talvez por ser um órgão que cobra, tem má fama, sim! Mas nos tempos e no país em que vivemos, isso não é apanágio de poucas instituições. E acontece que esse bureau, unificando a cobrança e a distribuição dos nossos direitos autorais e recebendo, das sociedades gestoras que o compõem, para alimentação de suas unidades de processamento, dados bons e valiosos, é hoje parte de um sistema importante. Muito melhor, operacionalmente, que o existente antes de sua criação, em 1973.

A má imagem do ECAD e o desconhecimento da sistemática de seu funcionamento geraram uma cultura de estímulo à inadimplência, prejudicando a todos. Hoje, cerca de 40% de emissoras de radiodifusão se negam a pagar direitos sobre as músicas que tocam. E esse "caldo de cultura" chega também a inúmeros projetos legislativos, criados para eximir do cumprimento da legislação autoral os que utilizam publicamente nossas obras. Por essas e outras é que a criação da rica música brasileira - que deveria ser uma atividade de ricos - é, cada vez mais uma profissão de risco.

NEI LOPES é compositor e escritor e da diretoria da A.M.A.R.