Título: Tango desafinado
Autor:
Fonte: O Globo, 22/06/2008, Economia, p. 33

Falta de regras claras para investir, descontrole de gastos, inflação e pobreza ameaçam argentinos Janaína Figueiredo

Mais uma vez, a economia argentina está em estado de alerta. Analistas locais costumam lamentar que, em média, a cada dez anos a Argentina é cenário de uma crise que deixa o país em ruínas. Em 1989, foi a hiperinflação. Em 2001, o confisco dos depósitos bancários, desvalorização do peso e calote da dívida pública. Hoje, ninguém se arrisca a antecipar um novo colapso, mas os problemas econômicos são cada vez mais evidentes e, caso não sejam resolvidos pelo casal formado pela presidente Cristina Kirchner e pelo ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007), os riscos são grandes.

O novo gargalo foi explicado pelo ex-presidente do Banco Central Mario Blejer: para sair da crise de 2001, o país implementou um modelo de transição, cujos pilares são o altíssimo gasto público, subsídios e dólar alto, e a melhora dos preços dos produtos exportados. O problema, assegurou Blejer, é que o "modelo K" não inspirou confiança e está se esgotando, pela falta de regras claras e sem investimentos estrangeiros que ajudem a atingir um modelo sólido de crescimento. Para mostrar por que o país está, de novo, às voltas com problemas econômicos e sociais, a partir de hoje O GLOBO inicia série de reportagens sobre a crise da Argentina.

Atualmente, o país está em quinto lugar no ranking de captação de investimentos externos na América Latina, empatado com o Peru. Enquanto isso, o casal Kirchner continua aumentando gasto público, que entre 2002 e 2007 passou de 48 bilhões de pesos para 155 bilhões de pesos (cerca de US$51 bilhões). No mesmo período, os subsídios pagos pelo Estado argentino subiram de 3,4 bilhões de pesos para 14,6 bilhões de pesos (US$4,8 bilhões). No ano passado, a Argentina recebeu US$5,7 bilhões em investimentos. Este ano, a projeção de analistas (elaborada antes da crise entre a Casa Rosada e os produtores rurais) indica só US$5,4 bilhões.

Mesmo sem conseguir atrair os investimentos estrangeiros necessários para recuperar o país, o casal Kirchner continuou elevando o gasto público, graças ao sistema de retenções, usado para taxar as exportações, por exemplo, de petróleo e cereais. Em 2002, quando as retenções começaram, a arrecadação alcançou 5,022 bilhões de pesos. Já no ano passado, foram 20,4 bilhões de pesos (US$6,7 bilhões).

O governo alega precisar elevar seu caixa para redistribuir a riqueza no país. Já os produtores rurais, que passaram a pagar mais de 40% de tributos em março contra 15% em 2002 e há mais de cem dias protestam nas estradas, acusam a Casa Rosada de usar o dinheiro para financiar um projeto político de poder. No meio, há milhões de argentinos, vítimas de um dos principais flagelos do país: a inflação, que pelas estimativas extra-oficiais, este ano alcançará 25%.

A escalada de preços, em meio à crise de desabastecimento nos supermercados, aprofundou a sensação de miséria entre os argentinos mais pobres, que, em alguns casos, não têm recursos sequer para comprar leite, como na Província do Chaco. Outros agora vivem em favelas, como a Villa 31, na capital. O governo diz que a taxa de pobreza recuou de 23% para 20%, mas para os pobres argentinos a situação continua igual ou pior.

Para Cristian Abel Delgado e sua mulher, Fernanda, a situação só piorou nos últimos anos. Falta dinheiro até para o leite da filha Zaira, de 2 anos.

- Aqui no Chaco a pobreza não diminui - contou Cristian, de 25 anos, que diz não ter expectativa de melhorar suas condições de vida.