Título: De Vale e BNDES ao Itamaraty, razões de inveja
Autor: Figueiredo, Janaína ; Oliveira, Eliane
Fonte: O Globo, 24/06/2008, Economia, p. 20
Com país em crise e sem projeto sólido, argentinos cobiçam grandes empresas e instituições do Brasil, e até "moderação" de Lula
Janaína Figueiredo* e Eliane Oliveira**
BUENOS AIRES. Durante a campanha eleitoral de 2007, a presidente argentina, Cristina Kirchner, elogiou a fabricante de aeronaves Embraer e, em seus primeiros meses de gestão, fez questão de assinar um acordo que prevê a compra de aviões. A admiração de Cristina pela empresa brasileira reflete um sentimento generalizado entre os argentinos: a cobiça pelos pesos pesados brasileiros, públicos e privados, como mostra O GLOBO em mais uma reportagem da série, iniciada no domingo, sobre a nova crise argentina.
A lista inclui, além da Embraer, gigantes como Petrobras, BNDES, Embrapa, Vale, Camargo Corrêa, Odebrecht e Gerdau, entre outras. Às voltas com uma nova crise econômica e política, muitos argentinos admitem invejar a "moderação" do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a "solidez" da política externa comandada pelo Itamaraty.
- O que os argentinos mais admiram é o fato de o Brasil ter um projeto de país - explicou a socióloga Graciela Romer.
Segundo ela, "para muitos intelectuais e empresários argentinos, também é admirável como o presidente brasileiro é capaz de se preocupar com a pobreza, sem ser populista".
- O Brasil é uma grande referência para os argentinos. Há dez anos, nosso país tentava concorrer com o Brasil. Hoje, admitimos a liderança de nosso vizinho, por seu tamanho e, sobretudo, capacidade estratégica - disse Graciela.
No ensino público, Argentina está à frente
Na visão do subdiretor do jornal "La Nación", Fernán Saguier, o que os argentinos invejam no Brasil é a moderação e continuidade dos governos.
- No Brasil não há ruptura, e sim continuidade. Admiramos a maturidade de seus dirigentes políticos - afirmou.
De acordo com uma graduada fonte da área diplomática brasileira, "a Argentina merece uma tese de doutorado". Ao contrário de todos os prognósticos, o país parece não ter dado certo no século XXI. A Argentina perdeu sua base industrial e convive com a ausência de instituições sólidas. O apoio de organismos como o BNDES e a Petrobras pode ajudar no desenvolvimento do país vizinho.
- Parte do crescimento argentino se deve à manipulação dos índices de inflação, o que afeta a credibilidade do país junto à comunidade internacional. O mais grave é que, ao contrário do Brasil, que vai produzir mais para responder à inflação dos alimentos, o governo argentino passou a tributar as exportações de produtos básicos, como o trigo. Responde à crise agrícola com artificialismo - disse a fonte.
Para o senador Aloizio Mercadante (PT-SP), representante do Brasil no Parlamento do Mercosul, a saída é aprofundar a integração produtiva, científica e tecnológica com o segundo principal parceiro comercial dos brasileiros. Mas Mercadante concorda que é preciso fortalecer as instituições do país.
- Isso é fundamental para a democracia e o crescimento sustentável - disse o parlamentar brasileiro.
O economista José Alexandre Hage, consultor do Núcleo de Negócios Internacionais da Trevisan, disse que, apesar dos problemas que ocorrem no país, a estrutura de Estado no Brasil é mais coerente, o que desperta admiração da parte dos argentinos. Ele citou a Receita Federal, tida como modelo em termos de eficiência e agilidade no registro de dados no mundo todo, e a Polícia Federal, classificada por Hage como "a elite do serviço público". Lembrou ainda gigantes não apenas do setor público, como Embrapa e Petrobras, mas também do setor privado, entre as quais Vale e Gerdau, que vêm se internacionalizando e, assim, causando inveja na Argentina.
- Por outro lado, há certas áreas em que ficamos atrás dos argentinos e uma delas é o ensino público. À luz do século XIX, a Argentina já pensava a escola pública - disse Hage.
Nas ruas de Buenos Aires, os elogios ao Brasil são cada vez mais freqüentes.
- Lula não tem estudos, mas é inteligente e consegue colocar pessoas competentes no governo - disse a comerciante Aurea Stenzel.
Argentinos estranham hábito de beber cerveja
Já o advogado Pablo Fernández, apesar de nunca ter ido ao Brasil, só pensa nas praias do Nordeste quando o assunto é o país vizinho.
Mas nem tudo é elogio. Os argentinos também estranham costumes brasileiros, como tomar cerveja num churrasco.
- Vocês são engraçados. Não abrimos mão de um bom vinho para acompanhar a carne - brincou Fernández.
(*) Correspondente
(**) Enviada especial
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