Título: Geladeira nova, nem sempre cheia
Autor: Tabak, Flávio
Fonte: O Globo, 28/06/2008, O País, p. 3

Pesquisa do Ibase mostra que 54,8% dos que têm Bolsa Família enfrentam restrição de comida

Flávio Tabak

Mais da metade das famílias beneficiadas pelo programa Bolsa Família, do governo federal, passa fome ou não tem a quantidade de alimentos suficiente em casa. Pesquisa divulgada hoje pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) traça um perfil dos inscritos e mostra que o padrão de consumo das famílias, por mais que enfrentem problemas para comprar comida, mudou. A transferência de renda serve, muitas vezes, como um cartão de crédito para comprar eletrodomésticos, dada a regularidade dos depósitos.

O Ibase usou conceitos de segurança alimentar para analisar a situação dos beneficiários, num universo de 5.000 inscritos em 229 municípios, ouvidos em 2006 e 2007. É a primeira vez que esse tipo de levantamento é feito, e por isso não dá para afirmar se melhoraram ou não as condições sociais dos participantes. Segundo os dados, 20,7% das famílias inscritas apresentam situação de fome entre adultos e/ou crianças. Outros 34,1%, dos 11,1 milhões de titulares dos cartões do programa, têm algum tipo de falta de comida. Somados, os dois grupos representam 54,8% do total. Apenas 16,9% dos entrevistados foram considerados em segurança alimentar, ou seja, estão com a geladeira cheia.

Coordenador diz que foco é correto

O coordenador do estudo, Francisco Menezes, diz que o baixo número de titulares com alimentação plena não quer dizer que o programa esteja dando errado. Segundo ele, as famílias que passam fome refletem o acerto no foco do Bolsa Família, direcionado principalmente para os brasileiros mais pobres:

- Uma pesquisa anterior poderia ter apresentado resultados piores. Essa maioria de famílias com restrição alimentar não pode ser vista desligada de outros dados. Isso quer dizer que o programa está bem focado. Mesmo assim, a transferência de renda para as camadas desfavorecidas ainda não é suficiente. Muitos deixam de gastar com comida para comprar remédios.

Menezes diz que as informações colhidas sobre a compra de alimentos apontam para uma aparente contradição. Enquanto as famílias aumentaram, em geral, o consumo de alimentos básicos, como arroz e feijão, houve um acréscimo na aquisição de biscoitos e industrializados (63% e 62% respectivamente).

- Não podemos concluir que as famílias estão usando mal os recursos quando compram comida. Melhorou a variedade, 76% dos titulares disseram que adquirem mais arroz - afirmou o coordenador da pesquisa, acrescentando, porém, que alimentos de baixo valor nutritivo passaram a entrar nos carrinhos de supermercado dos titulares do Bolsa Família: - Cresceu o consumo de biscoitos, doces e refrigerantes, que ficaram mais baratos, com mais oferta de marcas.

O pesquisador do Ibase afirma também que a ingestão desse tipo de alimento não ocorre por falta de informação. De acordo com Menezes, as famílias sabem o que estão comendo, mas decidem comprar refrigerantes, por exemplo, por causa do preço e pela sensação de saciedade provocada pelo açúcar:

- Há esse fenômeno. As camadas mais pobres substituem alimentos de melhor qualidade por outros de pior para preservar o orçamento. Há também a satisfação trazida pelo açúcar, muito pedido pelas crianças.

Depois da alimentação (87%), a compra de material escolar (46%) é a segunda colocada na lista dos gastos de quem recebe o programa. A má distribuição das compras reflete, segundo o estudo, a falta de outras políticas públicas associadas ao Bolsa Família. A pesquisa sugere, por exemplo, incentivos direcionados para a agricultura familiar, a ampliação da alimentação escolar no ensino médio e a regulamentação da publicidade de alimentos de baixa qualidade.

Esta semana, o governo anunciou reajuste de 8% para o Bolsa Família, um reajuste acima da inflação. O aumento começará a ser pago em julho, três meses antes das eleições.

Mulheres decidem sobre os gastos

As mulheres são as grandes personagens do Bolsa Família. Segundo a pesquisa, elas gerenciam os recursos em 94,9% dos casos, mas com sobrecarga de funções. Enquanto ganham mais poder dentro de casa, fazendo o planejamento dos gastos mensais, elas continuam a fazer compras, levar as crianças à escola e ao posto de saúde.

A metade dos beneficiados rurais do programa está no Nordeste (50%). De acordo com o estudo, mesmo que tenham complemento de renda, os titulares dos cartões continuam a enfrentar percalços no cotidiano, como falta de transporte e acesso a supermercados.

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