Título: O lado obscuro do poder na Nicarágua
Autor: Aznárez, Juan Jesús
Fonte: O Globo, 02/07/2008, O Mundo, p. 27

Evolução da acusação de estupro contra Ortega retrata história de país marcado por corrupção e autoritarismo institucional

Juan Jesús Aznárez

MANÁGUA. Zoiloamérica Narváez sentiu o insuportável peso da revolução sandinista quando seu chefe, Daniel Ortega, a fez crer que sua estabilidade emocional, o cumprimento dos deveres do líder com a História, e o destino da revolução e da pátria passavam pela satisfação de seu apetite sexual.

¿ Cheguei a crer que o meu sacrifício contribuía com a revolução ¿ testemunhou a vítima.

Presidente da Nicarágua duas vezes (1985-1990 e atualmente), Ortega consumou a primeira violação de sua enteada em 1982, quando tinha 34 anos e a menina havia completado 15, segundo a documentação apresentada à Justiça. A adolescente desconhecia até que ponto a denúncia dos ultrajes, apresentada aos tribunais há dez anos, em junho de 1998, determinaria o futuro do país e o curso de uma revolução aplaudida quando derrubou o ditador Anastacio Somoza, em 1979, mas malsucedida devido ao autoritarismo, a corrupção e a sordidez da condição humana.

Alemán cumpre pena em seu sítio mas sai quando quer

Esta é a história de estupros impunes, de um movimento destroçado, o sandinismo, e da espúria aliança entre seu principal dirigente, Ortega, e o corrupto ex-presidente direitista Arnoldo Alemán (1997-2001), condenado a 20 anos de prisão em 2003 por lavagem de dinheiro e roubo do Estado: um botim de US$250 milhões. A aliança evitou a prestação de contas à Justiça e abriu caminho para uma espécie de autoritarismo institucional na Nicarágua.

Alemán, de 62 anos, cumpre o cômodo castigo de num sítio, onde é visitado por parentes e cúmplices. O réu viaja a Manágua quando quer. O roubo do erário não é novidade na Nicarágua. Os Somoza eram donos do país desde 1934, e os guerrilheiros o tomaram a tiros e o administraram à vontade. Milhares de camponeses receberam terras, mas a depredação vergonhosa foi a oficial: comandantes tomaram bens e empresas do Estado até Violeta Chamorro ganhar as eleições de 1990.

A derrota sandinista influenciou o calvário de Zoiloamérica e a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que desde então entrou em declínio. Dora Téllez, ex-ministra sandinista, faz greve de fome há 13 dias no centro da capital contra a ilegalização do Movimento de Renovação Sandinista (MRS), fundado em 1995. Passeatas de protesto tomaram as ruas do país nos últimos dias.

¿ Boa parte dos fundadores e principais líderes abandonaram o partido, e às deserções se somaram os questionamentos éticos que sofre Ortega ¿ resumiu o analista Raúl Zibechi.

O questionamento mais grave foi a suposta violação de Zoiloamérica. O caso está na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em Washington, à qual ela, hoje uma socióloga de 41 anos, recorreu.

¿Fui molestada e sexualmente abusada por Daniel Ortega desde os 11 anos, e estas ações continuaram por quase 20 anos¿, escreveu ela na acusação. ¿O poder usou contra mim todos os instrumentos possíveis de dominação: físicos, psicológicos, políticos e militares.¿ Ela foi submetida a um regime de cativeiro, perseguição e vigilância, segundo afirma, e sofreu abuso de seu corpo, de suas emoções e crenças, e de sua condição de militante sandinista.

O temor de Ortega de perder a imunidade parlamentar não é estranho à partilha dos Poderes do Estado entre a FSLN e Arnoldo Alemán, do PLC. A maioria de seus deputados obedece por temer ser tirada do jogo.

Ninguém precisa temer devido às reformas constitucionais de 1999 e de 2004, que limitaram o Executivo em benefício da Assembléia Nacional, controlada por um bipartidarismo caudilhesco. Os cabeças do pacto, Ortega e Alemán, tomaram conta da Justiça porque a temiam. Esta semana, FSLN e PLC indicaram oito membros da Corte Suprema de Justiça, todos dos dois partidos. Entre eles o irmão do ex-presidente, Antonio Alemán.

Sete anos após o fracasso eleitoral de 1990, e seis depois de casar com Alejandro Bendaña, ex-assessor de Ortega, Zoiloamérica falou com seu algoz.

Após denúncias, pacto com seu opositor

Aparentemente contrito, ele perguntou se um dia ela o perdoaria e entenderia que ele nunca a vira como filha, e que os anos de cárcere transformaram sua sexualidade. Ela quis crer, mas o pesadelo continuou. Ortega, supostamente, se propunha a contar os detalhes das relações sexuais a seu marido, praticá-las os três juntos ou gravá-las em vídeo.

No ano seguinte, ela o denunciou. O sofrimento da enteada, a principal arma de Alemán nas negociações com Ortega, começou em 1978, um ano antes da expulsão de Somoza. A poetisa Rosario Murillo, mãe da vítima e mulher do acusado, só interveio porque Ortega era tudo para ela naquele período de ideais e fúria libertária. A passagem do tempo aproximou mãe e filha, que se reencontraram em 2004. A filha não perdoou o padrasto

O testemunho de Rosario Murillo seria definitivo. Ela é a coordenadora dos Conselhos do Poder Cidadão, chefe de Comunicação e Cidadania da Presidência, e muito mais. ¿Na verdade, ela é a presidente da Nicarágua. Não se move uma folha no governo sem a aprovação dela¿, afirma uma pessoa próxima.

Após a reconciliação de 2004, Murillo ascendeu. Um membro do partido perguntou por que ela mandava tanto. Responderam que ¿ela o chantageia. No momento em que ele a deixar, ela convoca uma entrevista para confirmar os estupros.¿

Zoiloamérica narrou as obscenidades meses antes do triunfo revolucionário. ¿Você já está pronta¿, disse Ortega, supostamente, a ela ao saber de sua primeira menstruação. Depois, as masturbações, as pressões para o uso de vibradores e filmes pornográficos, os maus-tratos verbal e físico, e a entrada de terceiros no crime. ¿Me tratou pior do que a uma mulher que vende o seu corpo¿.

Padres sandinistas aconselharam a ela resignação cristã e sacrifício no interesse da tranqüilidade espiritual do comandante e de sua sagrada missão. ¿Foi-me negado o direito de existir como um ser humano, fui mantida como um objeto de um outro ser. Seu atrevimento chegou a grau tal que não se importou de me chamar à Casa do Governo e tentar, ali mesmo, manter relações na presença de terceiros.¿ Ortega negou tudo e acusou Zoiloamérica de ser uma ferramenta da CIA.

Justiça do país se nega a aceitar denúncia

Ortega renunciou à imunidade parlamentar, em 12 de dezembro de 2001. Mas o I Juizado de Crime de Manágua, a cargo da ex-guerrilheira da FSLN Juana Méndez, recusou o caso. A denunciante não aceitou e o caso foi enviado para o II Juizado, de Ileana Pérez, também próxima do governo. Ela recebeu o caso no dia 17 e o rechaçou um dia depois. Finalmente, o CIDH aceitou o caso contra o Estado por negação da Justiça.

Após tanto tempo, Zoiloamérica não desiste do caso. Depois das críticas dos sandinistas, também virou alvo de feministas. Ela pode não acelerar a tramitação do caso ou permitir seu arquivamento. Mas dificilmente esquecerá os passos no corredor até seu quarto. ¿Verás que, com o tempo, irás gostar¿, como ele dizia.

Seu dono e senhor tentava acostumá-la ao sofrimento com o argumento de que a felicidade não existe e que ela deveria aprender a viver com o que ele dava porque não cabia a ela esperar mais nada. Sua mãe menosprezava seus lamentos, que atribuía a seu desejo de chamar a atenção de Ortega e competir com ela. Apresentada a denúncia há dez anos, talvez Zoiloamérica pense que o passar do tempo é o melhor para enfrentar o que resta de sua vida sem os pesadelos do passado.