Título: Crise torna Eldorado Argentino uma ilusão
Autor: Oliveira, Eliane
Fonte: O Globo, 29/06/2008, Economia, p. 32
Reduto do casal Kirchner, província de Santa Cruz sofre com dese RIO GALLEGOS, Argentina. Sob críticas e com a popularidade em queda, a presidente argentina, Cristina Kirchner, e seu marido e antecessor, Néstor Kirchner, já não são mais queridos em sua terra natal. A última reportagem da série do GLOBO sobre a Argentina, iniciada no domingo passado, mostra que em Santa Cruz, província situada na Patagônia, a população está irritada com o casal. Não apenas pelo que ocorre em nível nacional ¿ devido ao caos que se instalou no país após o bloqueio de estradas nos protestos contra os impostos às exportações de grãos; ao congelamento de tarifas que afugentaram investimentos estrangeiros; e à inflação maquiada por instituições oficiais ¿, mas também por causa de denúncias de corrupção nas licitações de obras públicas, da forte interferência política em quase todas as áreas e do inchamento da província, que atrai argentinos de regiões mais pobres e até estrangeiros, o que desperta reações xenófobas.
¿ Sempre votei nos Kirchner e estou arrependida. É um desastre, os preços sobem todos os dias, estamos sentindo os efeitos dos bloqueios nas estradas, ao contrário de anos anteriores, não se pode mais andar à noite nas ruas devido à falta de segurança ¿ reclama a dona de casa Teresa Barría, de 62 anos, um filho, residente na capital de Santa Cruz, Rio Gallegos.
O marido de Teresa tem câncer e terá de buscar tratamento em outra província. Os hospitais estão superlotados, devido ao aumento da demanda. Estima-se que no hospital público da capital, são atendidas por dia cerca de cinco mil pessoas, volume substantivamente elevado, levando-se em conta que a população de Santa Cruz é de 200 mil habitantes, dos quais algo como 120 mil estão em Rio Gallegos.
Dados extra-oficiais mostram que chegam à Santa Cruz, diariamente, três famílias, grande parte vem do norte do país, mais afetado pela pobreza e o desemprego. A Patagônia argentina, que também inclui a Terra do Fogo, é vista como uma espécie de eldorado pelas pessoas de fora. Petróleo, gás natural, ouro e prata enchem de esperanças os imigrantes e de dinheiro os cofres da província do sul, que este ano conta com um orçamento de 4,4 milhões de pesos (quase US$3 milhões).
Desemprego faz moradores ressentirem estrangeiros
Com essa bonança, vem a inflação. O custo de vida em Santa Cruz é talvez o mais alto do país: 4.760 pesos (US$2,984) por mês para um casal com dois filhos pequenos. Para a paraguaia Norma Biaz, casada com um operário da construção civil, três filhos, esse eldorado não passa de ilusão. Ela vive com outras famílias em um bairro em condições miseráveis, o Marina.
¿ Aqui todos trabalham na construção civil. Viemos com a promessa de emprego e habitação. Não temos uma casa decente porque o aluguel aqui é muito alto ¿ diz ela, que mora em uma pequena casa de madeira, às margens de um lago congelado pelo frio.
Maria Fernanda Morales, 21 anos, duas filhas e casada com um militar, nasceu em Rio Gallegos. Para ela, a realidade não é muito diferente da de Norma.
¿ Nasci e me criei aqui, mas não tenho emprego. As pessoas vêm de fora para ganhar menos e nos tomam todos os postos de trabalho. Sinto raiva e vergonha ¿ afirma.
¿Casal K¿ participa dos principais negócios
Os jovens jardineiros Alberto Montes e Eduardo Rojas, parecem não se importar com isso. Vieram da província de Salta, no norte da Argentina, e afirmam que vivem melhor em Rio Gallegos. Dizem que por terem salários que os permitem viver, estarão ao lado de Cristina Kirchner onde ela estiver. Já o peruano Amaro Huallpa, casado, quatro filhos, aproveita o aumento da renda da população local para ganhar a vida vendendo gorros:
¿ Tenho 64 anos. Sou velho para trabalhar na construção.
Mas o que têm os Kirchner a ver com isso? Tudo, responde o secretário-geral do sindicato dos professores de Santa Cruz, Pedro Muñoz. Direta ou indiretamente, o casal está envolvido nos principais negócios da província, inclusive o imobiliário. O sindicato, que venceu uma batalha com o governo no ano passado, ao conseguir que fosse inscrito nos contracheques dos docentes todo o salário recebido ¿ antes, 60% dos vencimentos não eram registrados, o que colocava em risco os ganhos futuros na aposentadoria ¿, fez um levantamento contábil e descobriu que as obras públicas estão superfaturadas.
¿ Descobrimos que o preço de uma casa com apenas um quarto custa três vezes mais do que se fosse adquirida no setor privado. Além disso, as licitações são ganhas sempre pelas mesmas empresas. Todos sabem que os Kirchner têm participação no setor imobiliário ¿ diz Muñoz.
Verdade ou não, essas irregularidades são comentadas nas ruas de Rio Gallegos e as autoridades locais preferem a discrição. Mas nem tudo pode ser falado abertamente na capital, sobretudo quando os interlocutores são funcionários públicos ou parentes de servidores. O total de pessoas que trabalham no setor público em Santa Cruz é de 46 mil pessoas. Levando em conta suas famílias, a influência dos Kirchner atinge, no mínimo, metade da população.
¿ Isso acontece há 17 anos, desde que Néstor Kirchner assumiu o governo da província ¿ acusa o deputado da oposicionista União Cívica Radical (UCR) Tarik Hallar. ¿ Os Kirchner compram dirigentes políticos, perseguem quem não está com eles, manipulam a opinião pública.
Outro ponto de atrito diz respeito aos petroleiros. No ano passado, a categoria fez uma greve de mais de 40 dias, causando prejuízo de US$75 milhões à província. Luis Cárdenas, da federação dos petroleiros, diz que os trabalhadores do setor querem reposição salarial e mais transparência em dados como a quantidade de gás natural e petróleo produzido.
www.oglobo.com.br/blogs/janaina/mprego, inchaço das cidades e problemas sociais