Título: Lá atrás
Autor: Buarque, Cristovam
Fonte: O Globo, 05/07/2008, Opinião, p. 7

Niemeyer, Jatene, Pitanguy são exceções. Raríssimos dos nossos filósofos, escritores, cientistas, profissionais têm expressão internacional e serão lembrados no futuro por suas contribuições à Humanidade. Não temos um único Nobel em ciência ou literatura. Esse não é um problema genético dos brasileiros. É o resultado da limitação da nossa educação de base em gerar pensadores com padrões dos melhores do mundo.

Mais do que qualquer outro profissional, o intelectual é um produto social, depende da emulação ao seu redor. Para que o pensamento avance até o nível internacional, a atividade intelectual exige diálogo e embate. Mas o Brasil não tem massa intelectual, e cai num círculo vicioso: ser uma nação de poucos intelectuais empobrece a todos, no número e no nível da vida intelectual brasileira. O diálogo e o embate ficam limitados a pouquíssimas pessoas que concluem um bom ensino médio, fazem boa universidade, têm boa carga de leitura, conhecem os clássicos de cada área do conhecimento, desenvolvem seu potencial nos níveis mundiais e históricos. Com a imensa maioria da população excluída das atividades intelectuais, os pouco educados se destacam sem muita concorrência.

Oitenta por cento da população adulta mal termina o ensino médio, não lê mais do que poucos livros durante toda a vida. Entre os demais, no máximo 5% conseguem fazer um curso razoável, adquirir um mínimo de cultura, medianamente sólida. Assim, encontram espaço relativamente fácil para serem doutores reconhecidos no país, mas não no exterior.

Nossa intelectualidade está protegida pela cota da exclusão dos demais. Os intelectuais brasileiros têm espaço porque os sem-escola-de-qualidade ficaram excluídos. Até a cota para negros na universidade é excludente, pois busca privilegiar a raça, mas apenas para os que terminam o ensino médio, não para os milhões sem boa educação de base.

Excluindo da escola milhões de brasileiros, desperdiçamos gênios, que ficam para trás. Reduzindo o número dos que têm acesso à escola de qualidade, diminuímos o nível de exigência na educação dos que estudam. Ficamos com milhões de deseducados e com educados acomodados e sem concorrência, por causa da pobreza educacional ao redor. Nessas condições, mesmo a boa escola fica ruim. Para sobreviver e se destacar, a elite intelectual não precisa ser boa: destaca-se sem esforço. Comprova o velho ditado: "em terra de cego, quem tem um olho é rei". Essa é a regra da formação dos pensadores no Brasil.

Não temos um Nobel, mas temos muitos dos melhores jogadores de futebol do mundo. Porque, no futebol, nenhum menino é excluído; todos têm sua chance nos campos de pelada. Nossos jogadores se destacam lá fora porque sua qualificação é resultado de uma disputa com todos aqui dentro, dos 4 aos 18 anos. Aí sim, a concorrência nacional se eleva aos padrões mundiais. Ganham os melhores e mais persistentes. E como a maioria é pobre, a maior parte dos craques vem, naturalmente, das camadas mais pobres.

Na educação ocorre o contrário. É como se o Brasil fosse um navio com crianças e jovens, jogando 60 meninos e meninas ao mar por minuto, ao longo dos anos letivos da educação de base (200 dias por ano, com 4 horas de aula por dia). O debate se restringe aos poucos que chegam ao final, sem concorrência nem necessidade de estudar muito.

Se, lá atrás em Recife, todos os meninos e meninas tivessem tido pais que os incentivassem a estudar, como eu tive; acesso a bons colégios, como eu tive; irmãos e amigos que estudassem e lessem, como eu tive; uma boa faculdade, não só na sua área mas também no debate de idéias, como eu tive; você não estaria lendo este artigo. Porque outro melhor teria tomado meu lugar. Ou, talvez, a concorrência tivesse feito com que eu escrevesse melhor.

Por um lado, fui beneficiado; consegui meu espaço com menor concorrência. Por outro, fiquei menor, por não ter disputado com um número maior. O mesmo acontece com o Brasil: ficou para trás, porque deixou muitos brasileiros para trás.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).