Título: É preciso fazer escolhas
Autor: Heringer, Rosana
Fonte: O Globo, 05/07/2008, Opinião, p. 7

A recente Conferência das Américas para Revisão do Plano de Ação de Durban, em Brasília, reuniu governos para um balanço do cumprimento das metas de combate ao racismo, discriminação, xenofobia e formas correlatas de intolerância. Em relação às medidas, os governos foram tímidos.

No Brasil, uma das medidas concretas, a política de cotas em instituições de ensino, tem sido objeto de intenso debate. Encontram-se para análise e deliberação no Supremo Tribunal Federal duas ações diretas de inconstitucionalidade relacionadas ao tema.

Nesse debate, busca-se desqualificar as políticas norte-americanas com a justificativa de que as cotas para negros lá não contribuíram para reduzir desigualdades. Mas pesquisas demonstram que houve redução nos EUA, como pode ser lido no livro "O curso do rio: um estudo sobre ação afirmativa no acesso à universidade", de William Bowen e Derek Bok, que acompanhou 20 anos de trajetória acadêmica de estudantes negros.

Em 2001, a Uerj implantou cotas no Brasil. Desde então, dezenas de instituições alteraram seus exames seletivos para incorporar critérios raciais. Em 2004, o governo federal criou o Programa Universidade para Todos - Prouni, que concede bolsas de estudo a alunos negros, indígenas e de menor renda.

Hoje, já é possível se falar de um programa de ação afirmativa que tem "cara brasileira" e que apresenta resultados. É o bastante? Não. Sabemos, por teoria ou prática, que a dificuldade de os estudantes negros ingressarem no ensino superior é resultado de um acúmulo de desvantagens acumuladas em sua trajetória de vida, principalmente educacional. E o Brasil precisa enfrentar esse dilema, sob o risco de não conseguir alcançar o desenvolvimento social e econômico esperado.

A reserva de vagas no acesso ao ensino superior é parte dessa estratégia de melhoria da educação e consiste numa maneira de incorporar um número significativo de estudantes que, apesar de todas as dificuldades, conseguiram concluir o ensino médio e hoje "forçam as portas" das universidades.

O Brasil continua sendo um país desigual que não poupa aqueles que têm menos recursos e poder. Mas também é um país que, em sua Constituição e utopia, sonha em construir uma nação que não faça distinção entre ricos e pobres, homens e mulheres, brancos e negros.

Para tal, é preciso fazer escolhas que promovam grupos que foram historicamente menos favorecidos. Essa escolha que hoje o Brasil faz - e que esperamos que o STF ratifique - tem conseqüências históricas importantes e de forma alguma nega a nossa identidade nacional ou recusa a utopia da igualdade. Ao contrário: permite que se caminhe em direção à utopia. Sem essas medidas, o Brasil continuará simplesmente reproduzindo suas desigualdades e, aí sim, caminharemos em direção ao fracasso.

ROSANA HERINGER é dirigente da organização não-governamental ActionAid Brasil.