Título: Sem controle, grampeia-se tudo, todos... e outros
Autor: Casado, José
Fonte: O Globo, 13/07/2008, O País, p. 3

Interceptações telefônicas legais se alastram e viram o principal recurso de investigação no país.

Disposto a mais uma tentativa de dieta, o juiz-corregedor Luiz Zveiter, de 53 anos, sentou-se à mesa, esnobou os pães, foi direto ao café e puxou o jornal:

- Abri a página e li: "CPI criada, milhares de grampos telefônicos e tal..." Então, pensei: "Vamos ver o que acontece no meu tribunal."

Zveiter chamou os oito juízes-auxiliares da Corregedoria do Tribunal de Justiça e, juntos, iniciaram uma pesquisa sobre a quantidade de autorizações judiciais para grampos telefônicos no Estado do Rio.

- Fiquei estupefato: uma única comarca, por exemplo, havia autorizado 273 interceptações telefônicas. Pior: havia um sem-número de telefones cujas autorizações de quebra de sigilo não estavam registradas no banco de dados do tribunal.

Cada análise, ele conta, resultava em uma surpresa:

- Fiquei também estarrecido com autorizações assim: "Peço a interceptação do número tal e outros". Os magistrados deferiam o "e outros". Mas o que é que quer dizer o "e outros"? Quem são os "e outros"? Isso causou uma perplexidade muito grande.

O juiz-corregedor viu-se diante de uma "fotografia da situação", como define, que sintetiza a banalização do uso de um instrumento de força do Estado: a invasão de privacidade pelo grampo de telefonia e internet. Foram 409 mil telefones interceptados por ordem judicial no ano passado, segundo as empresas de telecomunicações. Na média, grampearam-se 33 mil novos telefones a cada mês - um aumento de cinco vezes em relação às estimativas empresariais para 2004.

O ritmo crescente levou as empresas do setor a ampliar investimentos na manutenção e custeio de estruturas específicas, com até 50 funcionários exclusivamente dedicados a interceptações. Como não conseguem acompanhar o ritmo das solicitações, algumas passaram a negociar com as polícias federal e estaduais prazos de até 48 horas para iniciar novas escutas.

Congresso considera a situação alarmante

No Congresso, onde há seis meses funciona uma CPI dos Grampos, considera-se a situação alarmante, tanto pela banalização quanto pelas evidências de que o país perdeu o controle desse instrumento de investigação.

- Antes o grampo era o último recurso na investigação, agora grampeia-se para depois investigar - diz o deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), presidente da CPI e ex-secretário de Segurança do Rio.

O relator da CPI, deputado Nelson Pellegrino (PT-BA), acrescenta:

- O objeto da investigação deixou de ser o crime e passou a ser o indivíduo. Se cada pessoa grampeada falou com dez outras, tivemos 4,9 milhões de cidadãos grampeados no ano passado.

Evidências da perda de controle sobre as interceptações legais acumulam-se nas empresas, no Judiciário e no Legislativo. É notável, por exemplo, a incoerência entre os números das próprias empresas, apresentados à Câmara. Enquanto diretores da TIM informavam à CPI ter recebido ordens judiciais para interceptar 235 mil telefones durante o ano passado, a Telefonica declarava ter registrado mandados para grampear apenas 2,6 mil linhas em 2007.

A Polícia Federal só se considera responsável por 48 mil grampos que, argumenta, foram vitais em casos de tráfico e de corrupção, como o do banqueiro Daniel Dantas. Por exclusão, as outras 361 mil interceptações registradas pelas empresas teriam sido iniciativa de juízes estaduais. E dessas, apenas 20% (72 mil) teriam sido feitas no eixo Rio-São Paulo.

Sabe-se que os governos estaduais mantêm em atividade um total de 60 centrais de interceptação de telefonia e de internet. Sabe-se, também, que nos tribunais estaduais não existem mecanismos de controle das interceptações autorizadas. A exceção é o Tribunal de Justiça do Rio.

Seis meses depois daquele dietético café do juiz Zveiter, a Corregedoria da Justiça fluminense avança na montagem de um sistema de acompanhamento estatístico das autorizações expedidas pelos juízes estaduais.

Às 10h da última quinta-feira, por exemplo, o tribunal registrava 4.943 telefones grampeados em todo o Estado do Rio, a partir de 1.030 decisões judiciais - média de cinco por despacho judicial.

Operadoras divergem de registro oficial

Naquela manhã, o sistema eletrônico revelava, ainda, um extraordinário aumento no número de linhas telefônicas legalmente interceptadas dentro do estado nos últimos 60 dias: 2.994 telefones, ou seja, 390% a mais que o total dos primeiros três meses do ano (766 linhas). Outros 1.183 telefones já estavam sob escuta desde o final do ano passado.

O problema é que os números de grampos autorizados do Judiciário fluminense não coincidem com os registros oficiais entregues pelos diretores das empresas de telefonia à CPI. Seis operadoras (Oi,Vivo, TIM, BRTelecom, Telefonica e Nextel) informaram ter realizado 18.831 interceptações por ordem de juízes estaduais.

- É muito mais do que temos anotado por aqui - diz o juiz-corregedor Zveiter, que mandou revisar todas as autorizações concedidas no ano passado. - Dei prazo de 30 dias para que as empresas apresentem seus dados ao tribunal e vamos conferir.

Um exemplo da discrepância: o grupo Oi informou à CPI ter recebido ordens da Justiça fluminense para grampear 3.595 telefones, durante todo o ano passado. Esse número equivale à soma das linhas interceptadas por todas as operadoras e com autorização (3.760) registrada no tribunal do Rio de 1º de janeiro até às 10h da última sexta-feira.

As evidências de descontrole se multiplicam. Nos documentos entregues pelo grupo Oi à CPI há registro de um caso no Estado do Rio onde o juiz expediu em média 12 novas autorizações de grampos a cada semana, durante o ano passado. Mas o recorde nacional ficou com dois juízes pernambucanos: juntos, eles mandaram a Oi grampear 2.144 telefones fixos e móveis no estado - mais da metade (53,6%) das ordens judiciais de interceptação recebidas pela empresa em Pernambuco durante 2007.