Título: O vice derrota a presidente
Autor: Figueiredo, Janaína
Fonte: O Globo, 18/07/2008, O Mundo, p. 34
ARGENTINA DIVIDIDA
Após derrota de projeto no Senado, Cristina Kirchner acusa seguidores de deslealdade.
Quando lançou sua candidatura presidencial, em julho do ano passado, Cristina Kirchner jamais imaginou que seu companheiro de chapa, o ex-governador da província de Mendoza Julio Cobos, seria, um ano depois, o responsável pela maior derrota já sofrida pelo casal Kirchner desde sua chegada ao poder, em maio de 2003. Na madrugada de ontem, Cobos, que foi expulso da União Cívica Radical (UCR) por sua aliança com Néstor e Cristina Kirchner, votou contra um projeto enviado pela presidente ao Congresso para modificar (e na prática elevar) os tributos cobrados aos exportadores de grãos.
Após 18 horas de debate, a Casa Rosada, que considera necessária a medida para impedir o aumento de preços no mercado interno, enfrentou o cenário menos esperado: a divisão dentro do peronismo provocou um empate em 36 votos, o que obrigou o vice-presidente - que é presidente do Senado - a desempatar.
- A História me julgará. Peço desculpas se estou cometendo um erro. Meu voto é positivo, voto contra o projeto - disse Cobos, visivelmente abalado por uma situação que admitiu ser "a mais difícil" que enfrentou em toda a sua vida.
Ontem à noite, Cristina discursou para seguidores na província do Chaco. Ela não se referiu diretamente ao vice, mas fez duras críticas aos aliados que votaram contra sua proposta:
- Quero agradecer a presença de todos aqui, para que olhemos uns nos olhos dos outros. E saber, ao olhar em seus olhos, que nunca traímos uns aos outros.
Numa outra possível menção a seu vice, ela recordou que não apenas integrantes do peronismo foram desleais. Cobos não é filiado ao partido:
- Alguns que não são de nosso partido nos acompanharam, e outros que estavam conosco desertaram.
A votação de ontem era considerada crucial pelo casal Kirchner, que tentou até o último minuto conquistar os dissidentes. O projeto enviado ao Congresso era igual ao polêmico decreto de março (que até ontem não havia sido anulado pelo governo). A onda de protestos liderada pelos produtores rurais, que nos últimos quatro meses fizeram greves, bloquearam estradas e convocaram manifestações, obrigou Cristina acionar o Congresso, instituição pouco ativa desde que Kirchner foi eleito presidente, em 2003.
O casal Kirchner encarou o desafio, confiando numa maioria parlamentar que jamais falhara. Mas a crise com os agricultores, que consideram a medida um confisco, provocou um racha na base do governo, levando governadores, prefeitos e congressistas a manifestar suas divergências. Pressionados pelos produtores rurais de suas bases eleitorais, vários dirigentes peronistas temeram pagar o custo político.
Em meio a rumores sobre a compra de votos na Câmara (onde o governo ganhou por apenas sete votos) e no Senado, Néstor e Cristina sofreram um inesperado revés que, segundo analistas, torna incerto o futuro de um governo que assumiu há seis meses com 46% dos votos. Após quatro meses de crise, a imagem positiva da presidente é de 20%. Cristina deverá governar agora com uma sociedade que, depois de vários anos de apatia (em grande medida pelo trauma deixado pela crise de 2001), voltou a sentir a necessidade de protestar nas ruas em repúdio a medidas consideradas injustas e um Congresso que recuperou o protagonismo perdido.
Julio Cobos não deve renunciar ao cargo
Desde que o projeto de lei chegou ao Congresso, o vice-presidente buscou alcançar um consenso. Para isso, se reuniu com governadores opositores, líderes ruralistas e membros da Igreja, atitude que irritou o casal presidencial. O governo pretendia obter uma rápida ratificação da medida e a estratégia de Cobos não era bem vista. O chefe de Gabinete, Alberto Fernández, criticou os encontros organizados pelo vice.
- Pediram-me que acompanhasse o projeto oficial, mas meu coração me diz o contrário - assegurou ontem Cobos.
Numa madrugada histórica para o país, o vice levou meia hora para explicar suas razões (a necessidade de pacificar o país e encontrar um projeto de consenso) e anunciou o voto, que consagrou a vitória dos ruralistas, da oposição, e representou um duríssimo golpe para o projeto de poder do casal presidencial.
Minutos antes, o chefe da bancada do governo no Senado, Miguel Angel Pichetto, defendera a disciplina partidária, numa desesperada tentativa de salvar a votação.
- É inadmissível que um membro do governo vote contra seu próprio governo - assegurou Pichetto, à beira de um ataque de nervos.
Era tarde demais. Cobos não estava disposto a recuar. Horas depois, o líder da bancada kirchnerista declarou que o voto do vice era "incompreensível" e que "ele seria julgado de forma muito negativa pela História".
- Ele (Cobos) provocou um enorme dano ao governo - enfatizou Pichetto.
Antes de partir para a província de Mendoza, o vice reiterou seu desejo de "ajudar a pacificar o país":
- Espero que o país entre numa nova etapa.
Longe de querer seguir os passos do ex-vice-presidente Chacho Álvarez, que em outubro de 2000, em meio a denúncias de corrupção, renunciou, precipitando uma crise que terminou obrigando o ex-presidente Fernando de La Rúa (1999-2001) a abandonar o poder dois anos antes do término de seu mandato, o vice de Cristina parece disposto a permanecer no governo. A grande incógnita ontem era saber se Néstor e Cristina Kirchner concordavam com sua decisão.
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