Título: Sob críticas, Cristina volta atrás
Autor: Figueiredo, Janaína
Fonte: O Globo, 19/07/2008, O Mundo, p. 33

Derrotada no Senado, presidente argentina anula decreto que taxava ruralistas e rachou o país.

O governo da presidente argentina Cristina Kirchner anulou ontem o polêmico decreto aprovado em março, que modificara o sistema que taxa as exportações de grãos e provocou a maior crise política enfrentada pela Casa Rosada desde que o casal Kirchner chegou ao poder, em 2003. A medida foi bem recebida pelos agropecuaristas, e também pela oposição.

Mas todos criticaram o silêncio de Cristina e a ausência de um diálogo com o setor agrário, depois da derrota no Senado, onde o vice-presidente, Julio Cobos, impediu a aprovação de um projeto de lei que teria ratificado o decreto de março. Ontem, a presidente participou de vários atos públicos, entre eles um almoço com o presidente da Lituânia. Em todos, Cristina atuou como se nada estivesse acontecendo.

A estratégia da presidente, que pareceu quase autista em meio a uma crise política sem precedentes para o casal Kirchner, decepcionou grande parte da população, que esperava um gesto de conciliação. Para analistas, Cristina está cometendo um erro.

- A estratégia do governo está errada, porque a derrota no Senado, obviamente, representa um duro revés. Mas também é compreensível, pois reorganizar um governo é difícil - disse Carlos Fara, da Fara e Associados.

Segundo ele, o governo sabe o que está acontecendo no país:

- O problema é que sua visão ideológica impede o desenvolvimento de uma estratégia acertada.

A atitude da presidente foi ironizada pela imprensa local. "Ninguém a avisou?", foi a manchete de ontem do jornal "Crítica", que questionou o fato de Cristina "não ter mencionado uma só palavra sobre o revés no Senado". Os agropecuaristas exigiram uma imediata ação do governo para resolver os problemas do setor.

- Vencemos uma batalha e agora queremos que o governo nos convoque, queremos discutir uma política agropecuária que ajude a dar impulso à produção de alimentos - disse o vice-presidente da Sociedade Rural Argentina (SRA), Hugo Biolcatti.

A ex-candidata presidencial Elisa Carrió parabenizou a presidente por ter anulado o decreto de março, mas também defendeu a necessidade de diálogo com os produtores rurais:

- Chegou a hora de governar para todos. O governo não pode continuar atuando como se vivesse em outro país.

Mas, se em público a presidente evitou falar no assunto, na intimidade Cristina teria travado duríssimas discussões com seus colaboradores, sobretudo com o marido, o ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007). Segundo versões publicadas pelos jornais argentinos, o voto de Cobos teria provocado a ira de Kirchner e um perigoso impulso de abandonar o poder.

Para evitar renúncia, Lula é lembrado

O ex-presidente teria dito à mulher que estava na hora "de voltar para casa", decisão que teria sido impedida pelos principais assessores do casal, entre eles o chefe de Gabinete, Alberto Fernández. Para convencer o casal Kirchner, o ministro teria lembrado as derrotas sofridas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, entre elas na votação sobre a CPMF, segundo o jornal "Ambito Financeiro".

Cristina não renunciou e ontem recebeu os congressistas que votaram a favor do governo. Horas antes, o chefe de gabinete confirmara a anulação do decreto 125.

No texto do novo decreto, que anulou o anterior, o governo lamentou o fato de o Congresso não ter sido capaz de resolver o problema com os produtores rurais, e antecipou que caberá ao Executivo encontrar a maneira de impedir que o preço dos alimentos aumente no mercado interno, argumento usado pela Casa Rosada para aumentar o tributo cobrado aos exportadores de grãos. "O Executivo deverá resolver a questão, voltando a exercer suas faculdades, já que de outra forma foi impossível", diz o novo decreto.

A Casa Rosada aproveitou para criticar o campo. Para o casal Kirchner, o objetivo dos produtores rurais era derrubar um governo legitimamente eleito. A impressão que analistas têm é que, para Néstor e Cristina, seus opositores são inimigos e a disputa com eles é uma guerra pelo poder.

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