Título: Pedras no caminho da liberdade de imprensa
Autor: Figueiredo, Janaína
Fonte: O Globo, 20/07/2008, O Mundo, p. 37

QUARTO PODER NA ALÇA DE MIRA

Em ditaduras ou democracias, meios de comunicação enfrentam dificuldades impostas por seus governos para informar livremente.

Usando desde formas truculentas de censura dos jornais até sutis pressões econômicas, passando por vários matizes de controle estatal da mídia, governos impõem dificuldades à liberdade de imprensa em vários países. Mesmo nas democracias há tentativas de intervenção branca, com autoridades buscando influenciar a cobertura de seus atos. Hoje e amanhã, correspondentes do GLOBO em 3 continentes relatam as dificuldades de fazer a informação chegar ao cidadão sem a interferência do Estado.

Janaína Figueiredo

Em quase todos os seus discursos públicos, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, critica os meios de comunicação. Como seu marido e antecessor, Néstor Kirchner (2003-2007), ela tem certa dificuldade em digerir os questionamentos de jornalistas que mostram os problemas de sua gestão.

Em um gigantesco ato na Praça de Maio há cerca de dois meses, Cristina atacou o cartunista Hermenegildo Sábat, do jornal "Clarín", figura ilustre do jornalismo argentino, por uma charge publicada dias antes na qual a presidente aparecia com um esparadrapo na boca.

O incidente, apenas um exemplo que reflete a relação do casal Kirchner em relação à imprensa, provocou a reação das principais associações de jornalistas do país.

- O governo tem um conceito equivocado sobre o papel que devem desempenhar os meios de comunicação num regime democrático. O casal Kirchner considera que os meios de comunicação devem subordinar-se ao governo, e nós, obviamente, não estamos de acordo - afirmou o diretor do "Clarín", Ricardo Kirschbaum.

Desde o início do conflito entre a Casa Rosada e os produtores rurais do país, que se arrasta há mais de três meses, o governo comandou uma campanha contra o principal jornal argentino. Em manifestações a favor do governo, grupos kirchneristas levaram cartazes que diziam "Clarín mente". O jornal também foi alvo de ataques por parte de dirigentes políticos aliados ao governo, como Luis D"Elia, que está à frente de um movimento social de desempregados, os chamados piqueteiros. D"Elia chegou a dizer que a "Argentina vive hoje a ditadura do grupo Clarín". A campanha também buscou desprestigiar o canal de TV do grupo, o Todo Notícias, chamado de Todo Negativo pelos kirchneristas.

Em março passado, o jornalista Jorge Lanata, um dos fundadores do "Página 12", hoje aliado do casal Kirchner, lançou o jornal "Crítica da Argentina", novidade que não foi bem recebida pelo governo. O jornal já causou muitas dores de cabeça à presidente. Em uma de suas edições, o "Crítica" informou quanto foi gasto por Cristina em suas viagens ao exterior ano passado, em plena campanha eleitoral (US$8 milhões).

- Assim como o governo manipula as estatísticas do Indec (o IBGE argentino), pretende controlar o que é publicado na mídia. Nosso trabalho é lutar contra essa tendência - assegurou Silvio Santamarina, editor-chefe do "Crítica".

Uso da comunicação direta com a população

Para a deputada e secretária da Comissão de Liberdade de Expressão do Congresso, Norma Morandini, "o casal Kirchner têm uma concepção de comunicação direta com a população, ignorando o papel dos meios de comunicação":

- Existe uma escassa consciência sobre o papel que deve ser cumprido pela imprensa numa sociedade democrática.

A deputada lembrou que a presidente não participa de coletivas e informa sobre suas ações de governo através de discursos e propaganda. Morandini questionou, ainda, a maneira como o governo asfixia os meios de comunicação vetando a entrega de publicidade oficial a veículos opositores, entre eles, os jornais "Crítica" e "Perfil".

O encarregado de distribuir os recursos da publicidade oficial é o secretário de Meios de Comunicação, Enrique Albistur, que há dois meses foi acusado de ter repassado US$3,2 milhões em recursos destinados à publicidade do Estado a empresas suas, de familiares e de colaboradores próximos. O caso está sendo investigado.

Pouco preocupada com as queixas, a Casa Rosada anunciou recentemente a criação de um Observatório dos Meios de Comunicação, organismo que já foi batizado pela imprensa local de "guarita midiática". Para a Associação de Entidades Jornalísticas Argentinas, o observatório "é um instrumento que busca controlar o trabalho informativo". Segundo Néstor e Cristina, chegou a hora de desmascarar a imprensa argentina.