Título: Um sistema em falência
Autor: Gonçalves , Wagner
Fonte: O Globo, 29/07/2008, Opinião, p. 7

Nos Estados Unidos, há um grande respeito pelas decisões dos juízes de primeira instância. Aqui, ao contrário, alteram-se, continuamente, suas decisões, que às vezes chegam a ser execradas em público. Lá, a execução da pena começa com a sentença. Proferida esta, o réu já está condenado e é preso. No Brasil não. Só se pode executar a pena depois do "trânsito em julgado", que pressupõe o julgamento final do recurso extraordinário pelo Supremo Tribunal Federal. Não havendo prisão cautelar (temporária ou preventiva), saindo a sentença, com o réu solto, apela-se. Vai-se para um tribunal (estadual ou federal). O julgamento leva alguns meses, às vezes anos. Os tribunais estão abarrotados de processos e são muitos os incidentes levantados pelos bons advogados. Confirmada a sentença, numa ousadia, já que atendido o duplo grau de jurisdição, expede o tribunal o mandado de prisão. Antes de ele ser cumprido, é deferido, pelo Superior Tribunal de Justiça, um habeas corpus, porque "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" - art. 5º, inc. LVII, da CF. Se o STJ não deferir o habeas, o Supremo Tribunal Federal o fará, porque esta é a jurisprudência que está se firmando naquela Augusta Casa, nos últimos anos. Ao mesmo tempo, após a decisão na apelação, são interpostos os recursos especial e extraordinário, porque os bons advogados sabem que não se pode nunca, em hipótese alguma, deixar a sentença transitar em julgado. Chegando ao STJ, o recurso especial do réu - ele ainda é considerado inocente, apesar de já condenado em duas instâncias - o julgamento demora e demora muito, pois são milhares de processos. O do Edmundo, jogador de futebol, condenado por matar duas moças em um acidente de carro, encontra-se no STJ há mais de 7 anos. Nunca foi preso. Depois de julgado o recurso especial - leva-se anos, seja pelo acúmulo de trabalho, seja pelos constantes incidentes causados pela defesa - os autos sobem ao Supremo Tribunal Federal. E aí começa outra batalha. São milhares de recursos extraordinários e também milhares de habeas corpus O Supremo Tribunal Federal está-se transformando em Supremo Tribunal Penal. Ou o relator tranca o recurso por incabível ou por não atender aos pressupostos (e aí cabe recursos...) ou, admitindo-o, há que se aguardar. Ao mesmo tempo em que todos esses trâmites estão ocorrendo, os bons advogados questionam tudo, desde o início, por meio do habeas corpus, contra "o qual não pode haver qualquer restrição". Alegam: inépcia da denúncia; falta de justa causa para a ação penal; nulidades de tudo e por tudo; falta de fundamentação da prisão temporária ou preventiva - não há dados concretos; falta de fundamentação da sentença, do acórdão, só há "considerações genéricas..." E cada habeas se desdobra em "dois": um, para apreciar a liminar e o "outro" retorna, após, para apreciar o mérito. Mérito esse que, muitas vezes, é próprio dos recursos especial e/ou do extraordinário, que ainda estão tramitando. Quando calha, ao fim e ao cabo, de a sentença transitar em julgado, ainda há a possibilidade de um novo habeas corpus para dar efeito suspensivo à última decisão, até que se aprecie este último habeas. Enquanto isso, a prescrição está correndo e a impunidade é certa. Daí o fato de os juízes, procuradores e promotores de primeira instância serem como exército de brancaleone. Não porque sejam "perseguidores implacáveis", "violadores de direitos humanos" (dos poderosos?), mas porque, devido à juventude, ainda não sabem que o sistema penal brasileiro está falido. E só não o está para os pobres, que não podem pagar bons advogados.

WAGNER GONÇALVES é subprocurador-geral da República e coordenador da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão e Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público Federal.