Título: Escândalo incomum
Autor: Queiroz, Silvio
Fonte: Correio Braziliense, 20/05/2009, Mundo, p. 22

Parlamento britânico

Pela primeira vez em 300 anos, presidente da Câmara dos Comuns é forçado a renunciar. Michael Martin relutou em punir os colegas que embutiram despesas pessoais na verba de representação

No quase milenar Parlamento britânico, modelo da moderna democracia representativa copiado mundo afora, a tolerância se acabou para quem ¿se lixou¿ para a opinião pública questionando os gastos pessoais dos deputados com dinheiro público. O presidente da Câmara dos Comuns, centro do poder no parlamentarismo à inglesa, caiu ontem diante da pressão insuportável dos colegas e especialmente da oposição, que sobe as apostas e desafia o primeiro-ministro, o trabalhista Gordon Brown, a convocar eleições antecipadas. Com um pronunciamento seco e constrangido de apenas 35 segundos, Michael Martin tornou-se o primeiro chefe do Legislativo a deixar o cargo contra a própria vontade em 300 anos.

¿Sempre senti que esta casa vive seus melhores momentos quando está unida. Para que essa unidade se mantenha, decidi que deixarei o cargo de presidente no domingo 21 de junho¿, anunciou Martin diante do plenário repleto. Ele sinalizou que o sucessor poderá ser escolhido já no dia seguinte. Antes de passar a palavra ao ministro de Relações Exteriores, David Milliband, o presidente demissionário da Câmara dos Comuns finalizou declarando que ¿isso é tudo que tenho a dizer sobre o assunto¿. A porta-voz de Martin confirmou mais tarde que ele renunciará também à cadeira de deputado por um distrito de Glasgow, na Escócia. Ele é parlamentar há 30 anos e preside os comuns há nove.

No intervalo de oito dias, foi o terceiro pronunciamento do chefe do Parlamento britânico sobre o escândalo que arranhou uma instituição com mais de 800 anos de prestígio (veja infografia abaixo). No primeiro, ele atacou os parlamentares que o criticaram por colocar panos quentes sobre as denúncias de que deputados estavam embutindo despesas com residência, transportes e outros gastos pessoais nas verbas de representação. Martin foi então acusado de proteger interesses escusos, e na segunda-feira voltou a se pronunciar para pedir desculpas, porém sem acenar com a renúncia. A opção se tornou incontornável, porém, diante da ameaça concreta de ser submetido a um voto de desconfiança.

¿Ele não soube reconhecer a seriedade da situação e, por sua imprevidência, tornou ainda pior o que já era desastroso¿, comentou o deputado trabalhista Paul Flynn, um dos integrantes da maioria governista que assinaram a moção de desconfiança. Flynn classificou a queda do presidente da casa de ¿dolorosa¿, porém ¿inevitável¿. A líder da maioria, Harriet Harman, convocou todas as bancadas a ¿respeitar¿ o que apresentou como ¿um ato de generosidade¿ por parte de um colega a quem atribuiu ¿um compromisso apaixonado¿ com a Câmara dos Comuns.

Na mesma linha, o premiê Gordon Brown fez um tributo aos ¿30 anos de serviço público¿ do chefe do Parlamento, elogiou seu histórico como parlamentar, mas tratou de tomar distância de uma conduta que indispõe a instituição com o eleitorado. ¿O Parlamento não pode funcionar como um clube de cavalheiros, onde os integrantes fazem as regras e acertam entre si mesmos os procedimentos¿, comparou. Brown reuniu líderes partidários, em caráter extraordinário, na tentativa de costurar um acordo para introduzir reformas de emergência no funcionamento do Parlamento ¿ em especial, a criação de um organismo independente para fiscalizar os de gastos. ¿O cerne de qualquer reforma tem de ser a mudança da atual autorregulação para um sistema de controle externo.¿

Tanto a proposta do premiê quanto a renúncia do presidente dos comuns, no entanto, parecem pouco para acalmar a oposição conservadora, que insiste na convocação de eleições antecipadas ¿ sob o argumento de que os eleitores devem julgar novamente cada um de seus representantes. ¿O que as pessoas querem, realmente, é uma chance de ir às urnas para fazer um `xis¿ ao lado do nome do político que deve representá-las no Parlamento¿, afirmou o líder conservador, David Cameron. ¿Tirar Michael Martin não é o fim, é apenas o começo¿, reforçou o colega de bancada Douglas Carswell.