Título: O fio arrebentou
Autor: Berlinck, Deborah
Fonte: O Globo, 30/07/2008, Economia, p. 23
FIASCO EM GENEBRA
Índia e EUA não chegam a acordo sobre abertura comercial. Brasil perde com impasse em Doha
Deborah Berlinck*
Fracassou, de forma amarga, a última chance de concluir este ano a Rodada de Doha, como são chamadas as negociações para a abertura do comércio mundial. Isso significa que sete anos de conversas - com ganhos importantes para a agricultura do Brasil - correm o risco de só serem retomados a partir de 2009. O fracasso joga o sistema multilateral de comércio num clima de total incerteza, num momento em que a economia mundial enfrenta crise energética e de alimentos.
Dois países - Estados Unidos e Índia - foram responsáveis pela derrocada. "Tragédia", "desastre", "acidente aéreo" foram algumas das expressões utilizadas pelos negociadores, ao saírem da sala de reuniões. O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, disse não acreditar que tantos anos de negociação tenham ruído por causa de uma questão agrícola menor: as salvaguardas especiais, um mecanismo que permitiria a países em desenvolvimento erguer barreiras contra surto de importações. A Índia insistiu numa conta, e os EUA fincaram o pé contra.
- Estou muito decepcionado. Havia dito que as negociações estavam por um fio, e o fio arrebentou. É lamentável - disse Amorim à agência de notícias France Presse. - É incrível que tenhamos fracassado por causa de apenas uma questão. Se eu fosse o treinador, teria substituído os jogadores (os negociadores).
Para o chanceler, não está certo se as negociações serão finalizadas antes de 2013.
Lamy: "vou recolocar isso nos trilhos"
A proposta da Organização Mundial do Comércio (OMC) previa que as salvaguardas poderiam ser acionadas quando as importações de um produto subissem 40% acima da média dos últimos três anos. Mas indianos e chineses, alegando que precisam proteger pequenos agricultores, defendiam que o mecanismo deveria ser acionado quando as importações subissem 15%, e não 40%.
Uma das perguntas que os negociadores se faziam ontem era por que os EUA se mostraram tão inflexíveis. Nos bastidores, a explicação era que a negociação corria o risco de ruir, de toda forma, por falta de acordo para a redução dos subsídios do algodão - setor superprotegido nos EUA.
Fazer as negociações ruírem por causa das salvaguardas tornava mais fácil culpar a Índia pelo fracasso. Se as negociações tivessem fracassado por causa do algodão, a posição americana seria delicada, pois milhares de produtores de algodão na África sofrem com isso.
- A negociação morreu em salvaguardas. Mas será que não morreu em salvaguardas para evitar que morresse em algodão, tema difícil para os americanos? - perguntou um negociador.
Os indianos têm também boa parte da culpa, disseram os participantes. Kamal Nath, o ministro de Comércio do país, tem ambições políticas (fala-se que é candidato a primeiro-ministro) e chegou em Genebra batendo duro desde o primeiro momento.
Eram quase 18h (13h em Brasília), quando a representante de Comércio da Casa Branca, Susan Schwab, desceu as escadarias da OMC, para, visivelmente contrariada, anunciar:
- Acabamos de sair de um encontro decepcionante. E na sexta-feira estávamos tão perto - afirmou, apesar de insistir que o governo americano continua comprometido com a Rodada. - Não é o momento de falar do colapso da Rodada.
Mas todos na OMC sabem que as negociações vão cair no limbo. Por um motivo: um novo governo, a partir do ano que vem, poderá rever tudo o que se negociou até agora.
- Eles (americanos) traçaram uma linha na areia e não quiseram ultrapassar. Brasil e China foram fortes e positivos - disse Peter Mandelson, o comissário de Comércio da União Européia (UE) - Uma força irresistível encontrou um objeto imexível... e o resto é História.
O ministro indiano também lamentou, mas afirmou que isso "não deve afetar a confiança na OMC". Ele reconheceu que o colapso se deveu, em parte, a questões vinculadas à subsistência dos agricultores nos países em desenvolvimento.
Lamy dizia ontem que tentaria amarrar hoje uma fórmula para garantir que os ganhos obtidos não fossem jogados pela janela.
- Essa negociação (de Genebra) fracassou. Mas vou tentar recolocar tudo isso nos trilhos.
Representantes do agronegócio brasileiro que vieram a Genebra acompanhar o desenlace também saíram decepcionados.
- É um desastre. É uma tragédia para o mundo. É um absurdo a Rodada ser bloqueada por um tema menor na agricultura - disse Marcos Jank, presidente da União das Indústrias de Cana-de-Açúcar (Unica).
O único que saiu aliviado foi o representante da Associação Nacional da Indústria Automotiva (Anfavea), Pedro Bittencourt.
- Não estou comemorando, mas é verdade que isso nos dará mais tempo (para enfrentar a concorrência).
Para o representante no Brasil da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), José Carlos Tubino, o atual momento não era o melhor para fechar um acordo, com inflação alta, motivada pela elevação dos preços dos alimentos e do petróleo, e as eleições americanas:
- Há também o problema do dólar americano, que não sabemos para onde vai. É a principal moeda de troca no comércio internacional.
COLABOROU Eliane Oliveira, com agências internacionais