Título: Sem Doha, acordos comerciais terão novo perfil
Autor: Oliveira, Eliane; Novo, Aguinaldo
Fonte: O Globo, 30/07/2008, Economia, p. 25

FIASCO EM GENEBRA: Brasil teme que novos temas sejam usados como argumento para medidas protecionistas

Expectativa é que negociações bilaterais incluam temas como meio ambiente e aspectos sociais e trabalhistas

Eliane Oliveira e Aguinaldo Novo*

BRASÍLIA, SÃO PAULO e BRUXELAS. Com o fim da Rodada de Doha, que consumiu sete anos de esforços de 149 países, Brasil entre os protagonistas, ficará mais difícil negociar acordos de livre comércio, embora este seja um caminho óbvio para a flexibilização do comércio no mundo. A expectativa é que novos temas que não faziam parte da agenda da Organização Mundial do Comércio (OMC) - com destaque para questões ambientais, sociais e trabalhistas - passarão a ser exigidos nas negociações. Segundo governo, representantes do setor privado e analistas, essa previsão se aplica a uma possível retomada do diálogo entre Mercosul e União Européia (UE), mercado considerado o mais atraente pelo bloco sul-americano.

- Não há como fugir. Embora o mundo passe a negociar acordos bilaterais e regionais, esses temas entrarão em cheio na pauta - disse o assessor técnico da Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Mateus Zanella.

O Brasil sempre foi contra a inclusão desses temas, por avaliar que poderão ser usados como argumento para novas medidas protecionistas. Nesse contexto de mudança climática e desmatamento da Amazônia, os brasileiros seriam presas fáceis de barreiras adicionais ao comércio. Na área trabalhista, segundo fontes da área diplomática, não há como comparar os vencimentos de um trabalhador do Brasil com um dos EUA, por exemplo. Sem contar a ausência de parâmetros para os associados à OMC na parte social.

- Esses temas teriam de ser discutidos numa outra rodada multilateral, na OMC - disse uma fonte do governo.

O diretor de negociações internacionais da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Mário Marconini, concorda que é preciso buscar alternativas, mas alerta que não se deve ter uma visão romântica. Os EUA, lembrou Marconini, fazem acordos bilaterais com diversos países, mas não conseguem sequer aprová-los no Congresso americano.

- Em termos políticos, ficará ainda mais difícil ver os EUA como protagonistas de acordos bilaterais - disse Marconini.

O nível de dificuldade fica ainda maior se for levada em conta a posição dos americanos no sentido de exigir que, nos acordos bilaterais, os países aceitem regras em propriedade intelectual, investimentos e serviços. Isso, na opinião da coordenadora da área de negociações internacionais da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Soraya Rosar, pode acontecer numa negociação entre os EUA e o Mercosul (o Brasil não negocia separadamente do bloco).

- O caminho é avançar em condições fitossanitárias, abrir mercados que estão fechados. A UE nos dá uma cota de 200 mil toneladas de carne suína, enquanto oferece 1,2 milhão de toneladas para o Japão e cerca de 700 mil para a Coréia - disse Pedro Camargo, presidente da Associação dos Exportadores de Carne Suína.

O fato é que a OMC, mais do que enfraquecida, cai em descrédito e só vai emergir renovada e fortalecida dependendo dos desdobramentos políticos nos EUA e na Europa e dos efeitos da crise mundial de alimentos e energia. São mínimas as chances de a OMC escapar ao destino de se tornar um mero fórum de resolução de contenciosos. Por apostar todas as fichas na Rodada de Doha, o Mercosul só conseguiu fechar dois acordos fora da América Latina: um de preferências tarifárias, com a Índia; e outro de livre comércio com Israel.

Fracasso de Doha foi uma vitória do protecionismo

Por isso, o clima no governo e no setor privado ontem era de desânimo. Não porque tenha sido uma surpresa a falta de acordo. Mas em razão da oportunidade perdida. Até o último sábado, segundo fontes, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva acreditava num entendimento na OMC. Com o banho de água fria, a avaliação é que foi uma vitória do protecionismo.

Cálculos da Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) mostram que o Brasil deixará de ganhar, só com a ampliação das cotas agrícolas, US$5 bilhões. Já a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) aproveitou o fracasso de Doha para pedir prioridade para os acordos bilaterais.

- Agora, é hora de arregaçar as mangas e acelerar a negociação de novos acordos bilaterais - afirmou o presidente da Anfavea, Jackson Schneider.

Para as montadoras européias, o fiasco na área de bens industriais coloca o setor em risco. Segundo Peter Scherrer, secretario-geral da Federação Européia de Metalúrgicos, isso pode representar uma onda de demissões em massa.

(*) Com agências internacionais