Título: Bola pra frente
Autor:
Fonte: O Globo, 03/08/2008, Economia, p. 40

Pausa no chororô pós-Doha para analisar o jogo, que, felizmente, não acabou

O fracasso da Rodada de Doha - que buscava dar uma face mais humana e igualitária às relações comerciais entre os Estados - provocou uma frustração planetária proporcional às ambições que ficaram para trás. Mas será que ficaram mesmo? A concórdia é uma utopia? Ou o fiasco de Doha é apenas conseqüência natural de um processo ainda em curso, de complexas raízes históricas e cujos critérios de deliberação ainda clamam por refinamento? A seguir, numa rodada, quatro visões diferentes para minimizar o chororô e ajudar a refletir produtivamente sobre o tema. (Arnaldo Bloch)

"Vício e virtude" ou "Oito décadas em oito dias"

Demétrio Magnoli

Conceder o monopólio do mercado doméstico à produção da indústria doméstica (...) significa dirigir a maneira como as pessoas privadas devem empregar seus capitais, e essa regulação é, em quase todos os casos, inútil ou prejudicial. Se a produção doméstica pode ser oferecida tão barato quanto a da indústria estrangeira, a regulação é evidentemente inútil. Se não pode, deve ser, de modo geral, prejudicial." A passagem, escrita por Adam Smith no século 18, é o pilar da economia política clássica. Tomada literalmente, implica que as nações, em nome de seus próprios interesses, devem renunciar unilateralmente à proteção de seus mercados. A OMC só existe porque ninguém se comporta de acordo com a virtude proclamada pela doutrina liberal.

Os Federalist Papers, escritos para angariar apoio à Constituição dos EUA, vieram à luz pouco depois da obra maior de Adam Smith. No décimo-primeiro dos artigos federalistas, os autores indagam: "Suponhamos (...) que nosso governo está em circunstância de fechar os nossos portos à Grã-Bretanha, com quem por ora não temos tratado algum de comércio: qual será o efeito natural de tal comportamento? Não nos poria ele em estado de negociar com vantagem, a fim de obter em todos os portos do reino privilégios comerciais tão vantajosos como extensos?". Do vício protecionista nasceram juntos o conceito de guerra comercial e a diplomacia comercial.

A OMC é uma homenagem que o vício protecionista presta à virtude liberal. As suas raízes encontram-se no GATT, o velho Acordo Geral de Comércio e Tarifas, inventado em 1946 para espantar o fantasma da guerra comercial que assombrou o mundo na década da Grande Depressão e preparou o cenário para as devastações indescritíveis da guerra mundial. No sistema do GATT, todos negociariam com todos, segundo regras uniformes, e os privilégios concedidos se universalizariam. Uma ordem tendente ao liberalismo não apenas multiplicaria as riquezas como protegeria a humanidade assustada do espectro de uma nova guerra.

A máquina funcionou com eficiência enquanto o poder de decisão limitou-se às grandes potências e o jogo da liberdade econômica, praticado no tabuleiro da indústria e dos serviços, excluía os produtores de alimentos. A OMC tomou o bastão do GATT triunfante com a missão de incorporar todos os países e temas na harmonia utópica da ordem liberal. Nessa hora supostamente gloriosa, a máquina rangeu, estalou, estremeceu, engasgou e pifou. Doha faliu porque 2008 não é 1946 e a OMC não é o GATT.

Ao longo de anos, as engrenagens estacaram diante do rochedo da intransigência européia e americana no tema da agricultura. Dias antes da falência final, diplomatas exauridos haviam desenhado na areia a figura um tanto desconjuntada de um acordo consensual. Ela não era vistosa nem inspiradora, mas preenchia um espaço que não tem o direito de permanecer vazio. A lufada de vento que a apagou foi soprada pela China e pela Índia. As potências emergentes da Ásia não admitiram submeter seus agricultores à concorrência global.

O décimo-primeiro artigo federalista nunca foi tão atual. Antes ainda do encerramento do luto por Doha, estadistas e diplomatas dirigem seus olhares para as miragens dos tratados de comércio bilaterais. O chão salgado sobre o qual elas descansam é o dos privilégios e exclusivismos que formam a estrutura das guerras comerciais. Retrocedemos quase oito décadas em poucos dias. O vício cansou-se de prestar homenagem à virtude.

Sociólogo e doutor em geografia humana pela USP

O método do consenso e a teoria dos jogos

Antônio Rogério da Silva

O caminho na direção de um mundo sem fronteiras, que se alargou nas duas últimas décadas, parece ter tomado rumos mais estreitos com o fracasso da Rodada de Doha. Essa conferência, promovida pela Organização Mundial do Comércio (OMC) desde novembro de 2001, além da redução das barreiras protecionistas às mercadorias agrícolas e industriais, visava também a definir políticas sobre direito de propriedade intelectual, transparência na gestão pública, proteção ao meio ambiente e integração dos países menos adiantados. Logo, o fim do encontro sem um acordo formal representa um retrocesso na consideração de temas mais amplos do que a mera questão mercantil.

Com bons motivos, a OMC é criticada por atuar em favor da liberação do comércio mundial, a despeito da degradação do planeta e piora nas relações trabalhistas resultantes do desenvolvimento insustentável da economia global. A Declaração de Doha significava um avanço na antiga postura. Uma esperança de que as demandas humanistas por mais equidade viessem a ser apreciadas. Porém, o critério de deliberação por consenso se mostrou severo para o trato de assuntos tão delicados. Se de um lado o consenso universal impede que prevaleça a ditadura da maioria contra as partes com menor poder de barganha, por outro, foi mais um exemplo prático das dificuldades de aplicação dos princípios-chave de uma ética do discurso, nos moldes defendidos pelos filósofos alemães Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel. A busca pelo entendimento mútuo - meta principal dessa teoria - nem sempre se concilia com a razão voltada para satisfação dos interesses econômicos imediatos.

Tais reveses são previsíveis, embora lamentáveis, em negociações contendo muitos pontos polêmicos e partes com visões divergentes acerca dos assuntos. Problemas semelhantes aos vividos em regiões de conflito, como o Oriente Médio, onde a conclusão do processo de paz sofre ciclos constantes de idas e vindas. A conscientização dos povos em favor da cooperação e reciprocidade pela via pacífica, amiúde, tem de passar por etapas de avanços, impasses e superação até atingir o refinamento necessário para se concretizar.

Como um jogo de lances sucessivos, gentileza, quando não gera gentileza, mas deserção, exige retaliações que precisam ser logo esquecidas por negociadores clementes, a fim de que se evite o começo de uma violenta escalada bélica. Mas para a volta ao debate obter êxito, a sinalização de que novas garantias serão respeitadas deve ser bem compreendida pelos envolvidos. É o que nos ensina a premiada teoria dos jogos. Se assim for, as lamentações e as escusas dos países que não aceitaram o acordo na Suíça, sendo sinceras, indicam a possibilidade de retomada das conversações em futuras rodadas. Uma amostra de que, seja entre casais ou relações internacionais, é prudente deixar a porta aberta para o reencontro e o reinício da cooperação cujos resultados forem melhores que a atitude radical de se queimar pontes.

Jornalista e doutor em filosofia

O bom selvagem perde a inocência

Renato Galeno

No princípio era a discórdia. Ou não: até sobre isso os humanos discordam! Como nos relacionamos uns com os outros? O termo cunhado para se referir ao ser humano antes de ser domesticado pela força bruta do Estado ou as pressões da vida em sociedade é o "estado da natureza". Segundo Thomas Hobbes, em seu Leviatã (1651), neste estágio vivíamos numa condição de "guerra de todos contra todos". Havia o direito natural de que cada um lutasse por sua liberdade ou segurança, já que "a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta".

Mais de cem anos se passaram para o cerne do pensamento de Hobbes ser atacado. Em 1754, Jean-Jacques Rousseau criou a alegoria do "bom selvagem": um homem naturalmente bom, ou pelo menos neutro. Ironizada, por ingênua, a argumentação de Rousseau, na verdade, é sofisticada: não adianta imaginar o homem no estado da natureza, pois isso jamais existiu. Para ele, o que Hobbes, Locke e outros discutiam era uma masturbação intelectual que ignorava que o homem é, necessariamente, um ser social. Imaginá-lo numa guerra de todos contra todos é inútil. Até David Hume, que afirmava que o homem nasce mau, concordou que somos moldados pelo meio.

Hobbes voltaria do túmulo para atacar Rousseau dois séculos depois. No relativamente recente estudo acadêmico das relações internacionais, sistematizado após a Segunda Guerra, a guerra de todos contra todos voltou com ímpeto. A mais forte escola é a realista. Nela, o "interesse nacional" é o primordial, e as interações entre Estados são uma conta de "soma zero": se eu ganho, alguém está perdendo. Pior: se alguém ganha, eu perco. Com diferentes abordagens, Raymond Aron, Hans Morgenthau e E.H. Carr apontam este caminho com cheiro de pólvora.

A maior resistência era o liberalismo, com sua crença na liberdade individual e na capacidade de o livre comércio enriquecer e aproximar os homens. O "livre comércio pode acabar com as guerras", disseram liberais de terno e cabelos bem cortados em vez de batas e madeixas. Depois acusam Rousseau de ingenuidade...

Realistas afirmam que suas explicações se aplicam à realidade; liberais, que a realidade deveria funcionar como pregam. Mas as forças do mercado não produzem remédios para leishmaniose, nem constroem diques contra enchentes - assim milhares de africanos morrem de doenças patéticas e o jazz perde Nova Orleans. O realismo faz pipocar arsenais nucleares nas mãos de países preocupados com sua "liberdade e segurança", como a Coréia do Norte. A "grande ilusão" liberal desaguou nas trincheiras da Grande Guerra. A lei do mais forte, em Auschwitz.

Há alternativa? De tempos em tempos, os seres humanos percebem que pensar somente em si mesmos é contraproducente até para seus interesses egoístas. Pessoas de culturas diferentes redigiram a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948 (bons tempos em que não havia relativistas que defendessem a circuncisão feminina em nome de uma "cultura tradicional").

Mas o caso mais impressionante nas relações internacionais é a União Européia. Quem poderia imaginar que, só 12 anos depois dos milhões de mortos da Segunda Guerra, França e Alemanha já fizessem parte de uma estrutura que tornasse uma guerra entre Estados europeus materialmente impossível? Sim, há tensões na UE, como a luta por uma Constituição. Mas a kantiana paz perpétua intra-européia não tem preço - a não ser quando a união é usada para novos jogos, liberais ou realistas, com os "de fora".

No fim, o crucial talvez seja respeitar a premissa de Rousseau e seu contrato social: aceitar os homens como são, e pensar leis, ou instituições, como poderiam ser. A busca pelo bem comum através de instituições que limitem a discórdia "natural" seguindo a lógica do interesse geral - ou da maior parte dos interesses de cada um -, na qual as contas aritméticas tenham saldo positivo para a anárquica sociedade internacional. Ou não?

Jornalista e mestre em relações internacionais

Não há mais como recuar na trilha da aldeia global

George Vidor

Os caminhos do desenvolvimento econômico não são únicos, mas passam por grandes saltos de eficiência de uma sociedade como um todo, ou parte dela. Os fatores que propiciam esses saltos variam, e às vezes decorrem de oportunidades inesperadas. E não são poucos, na História, os casos de retrocesso de povos, países e regiões.

Ao teorizar sobre as causas da riqueza das nações ao fim do século XVIII, o escocês Adam Smith, professor de filosofia e ética, chamou a atenção para a importância do livre comércio como instrumento de promoção do desenvolvimento. Dizia ele, na obra que permanece como referência para os economistas, que essa liberdade de troca permitia aos consumidores, em todos os lugares, ter acesso a bens e serviços produzidos da maneira mais eficiente, o que seria uma garantia de prosperidade individual e coletiva.

Na verdade, o mundo nunca funcionou assim, e a proteção aos mercados prevalece sobre a liberdade comercial. No entanto, desde o fim da II Guerra Mundial há um esforço globalizado para se eliminar barreiras. A tentativa inicial fracassou no fim dos anos 40 e início dos 50 porque as fontes de financiamento em moeda estrangeira para as economias não industrializadas eram por demais escassas.

Mas o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt) impediu que o mundo travasse uma "guerra comercial" capaz de levar países novamente a se enfrentarem em conflitos armados terríveis, característicos do século XIX e da primeira metade do XX. O Gatt envelheceu e em boa hora surgiu uma Organização Mundial do Comércio (OMC), que, se não teve sucesso nas tentativas de eliminar subsídios diretos e indiretos à produção, estimulou uma forte redução nas tarifas às importações.

Não por acaso, diversas uniões aduaneiras progrediram desde então. A União Européia formou uma economia que supera a dos EUA, e tem 60% do seu movimento comercial entre os próprios integrantes, treze dos quais adotando a moeda única (o euro), fato inédito na economia moderna. O Nafta catapultou o México à linha de frente das economias emergentes e explica parte da prosperidade das economias norte-americanas a partir da década de 90. E o Mercosul fez com que o comércio entre Brasil, Argentina Paraguai e Uruguai se multiplicasse por cinco em vinte anos.

Desde o surgimento da OMC o comércio internacional passou a ter um novo ator importantíssimo: a China. Mas outras economias emergentes, como o Brasil, têm usado as exportações para crescer. Esse novo quadro tem sacudido os mercados e o fracasso de Doha ainda reflete a perplexidade dos governantes sobre so rumos da economia globalizada.

Porém, nessa nova era da internet não há mais como recuar na trilha da aldeia global. O mundo depende de mais saltos de eficiência para melhorar as condições de vida de seus habitantes. E, como dizia Adam Smith, o comércio exterior continuará sendo peça fundamental nesse processo. Mas dia, menos dia, Doha vai virar realidade, na prática.

Jornalista e economista