Título: A polêmica continua
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 17/05/2009, Brasil, p. 12

Há quase um ano, o Supremo permitiu o uso em pesquisas de embriões humanos congelados até maio de 2005. A pergunta que fica é: qual destino dar ao material criado desde então?

Prestes a completar um ano, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que liberou a utilização de embriões humanos em pesquisas científicas com células-tronco deu uma possível destinação a esse material genético, mas não sepultou a polêmica de vez. Médicos, cientistas e donos de clínicas de fertilização criticam a lei por ela proibir a doação dos embriões que tenham sido congelado depois de maio de 2005, data em que o texto passou a vigorar. Não entram na regra, portanto, os milhares de óvulos fertilizados desde então. Primeiro levantamento sobre o assunto no país, feito pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), contabilizou 5.539 embriões congelados só em 2008. Mas apenas 30% das cerca de 120 clínicas repassaram os dados. Portanto, esse número pode ser o triplo disso, sem contar os anos de 2005, 2006 e 2009.

A falta de uma norma específica no Brasil sobre o fim que pode ser dado a esses embriões excedentes das técnicas de fertilização in vitro, aliada à pressão religiosa, anuncia uma discussão ainda mais controversa que a polêmica em torno dos experimentos com células-tronco. O que existe para nortear o assunto, hoje, é apenas uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), de 1992, proibindo o descarte.

¿É claro que, depois da norma votada no STF, o número de embriões para a pesquisa tende a cair. E o que deve ser feito com os excedentes que permanecem congelados? Não é uma discussão nem em nível da saúde, mas também da ética, entre outras áreas do conhecimento¿, afirma Geni Neumann, gerente de Tecidos, Células e Órgãos da Anvisa. Presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida, Adelino Amaral aposta numa regulamentação da legislação, com a correção do prazo. ¿Não existe motivo para colocar um ponto de corte numa lei que demorou tanto para ser aprovada. O problema é que aí entram questões religiosas¿, diz. Procurada pela reportagem, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) preferiu não se manifestar sobre o assunto.

Segundo Amaral, é impossível saber exatamente quantos embriões excedentes existem nas clínicas de fertilização, atualmente. Mas ele destaca que a sobra ocorre com 20% a 30% dos casais que procuram tratamento para infertilidade. ¿O grande problema é quando o casal engravida, porque o embrião congelado fica em segundo plano¿, explica. Adequando-se às regras da Lei de Biossegurança, que trata da utilização do material genético em pesquisas, ele poderá ser doado a laboratórios. O outro destino possível é repassá-lo para uma receptora anônima, o que, no Brasil, segundo Amaral, é pouco frequente. A última opção seria permanecer com o material congelado. Para isso, os casais desembolsam uma média de R$ 40 por mês.

Proibições Com possibilidades tão restritas, não é de se espantar que os laboratórios de conservação estejam cada vez mais abarrotados. ¿Claro que existem embriões abandonados. Há situações de casais que se separam, e aí um quer doar, o outro não quer. Costumo dizer que os tanques de nitrogênio onde ficam esses embriões são uma bomba de efeito retardado¿, ressalta Amaral. Na avaliação do corregedor do CFM, o ginecologista e obstetra Pedro Pablo Magalhães, há um descontrole no setor. ¿Não sabemos se há clínicas descartando. Teria de haver uma denúncia para averiguar isso, até porque não temos como abrir uma lata e contar os embriões¿, diz o médico.

Magalhães lembra ainda que a resolução do conselho, proibindo descartes, diz respeito apenas à sua categoria. ¿Acredito que os médicos não têm interesse em se arriscar num ato proibido por resolução. Mas não podemos afirmar que tudo funciona perfeitamente¿, diz. Submetidos a um controle maior que as clínicas particulares, os serviços públicos que oferecem a reprodução assistida procuram manter um controle constante do nível de embriões congelados. ¿Quando começa a chegar em 400, nós chamamos os pais para propor novas transferências para o útero. Ao dar entrada no serviço, eles são informados de todas as condições, entre elas a de que não podemos descartar embriões¿, conta Rosaly Rulli, chefe do serviço de reprodução humana do Hospital Regional da Asa Sul.

Atualmente, existem na unidade de saúde 251 embriões congelados. Dos 45 casais responsáveis por eles, quatro encerraram definitivamente o tratamento, mas não deram destinação ao material, apesar do controle rígido que a unidade no DF tenta fazer. Para disciplinar melhor o setor, Rosaly defende a criação de uma lei. ¿Quando não tem legislação, você pode fazer tudo¿, afirma. Ela prevê que ocorra no Brasil o que se deu em outros países. Na Itália, por exemplo, o número de embriões elevou-se tanto que uma lei proibindo o congelamento de óvulos fecundados foi aprovada.

Limites Países como Suécia e Alemanha seguem essa cartilha mais rígida, determinando número máximo de embriões a serem criados. De outro lado, há nações como Canadá, Austrália, Espanha e Estados Unidos, onde o controle é menor. ¿Penso que o Brasil deveria adotar uma legislação mais restritiva, que limitasse a superestimulação de óvulos, por meio de drogas, como ocorre com as mulheres em tratamento hoje em dia. Com isso, as fecundações diminuiriam. Acabaríamos com essa farra do boi de hoje, quando se permite congelar oito, 10 embriões¿, defende Ieda Verreschi, professora associada da Universidade Federal de São Paulo que presta assessoria técnica para a Comissão de Bioética da CNBB.

Mas a ideia de restringir a produção de embriões não agrada médicos diretamente ligados à reprodução assistida. ¿Imagine jogar oócitos (óvulos) fora porque não podemos fecundar, seria muito prejudicial à paciente¿, destaca Rosaly. Amaral ressalta o alto custo para o casal. ¿A cada vez que não dá certo, é preciso pagar novamente. Como dizer para essa mulher que não vou aproveitar todos os óvulos dela. Nosso poder aquisitivo é bem diferente do dos europeus. Lá, muitas vezes o governo banca o procedimento¿, critica Adelino. Hoje, um tratamento completo, de acordo com ele, gira entre R$ 12 mil e R$ 15 mil. Na unidade pública da Asa Sul, há 3.200 mulheres na fila.