Título: Os fura-filas do transplante
Autor: Costa, Ana Claudia ; Merola, Ediane
Fonte: O Globo, 31/07/2008, O Globo, p. 14

Um médico é preso e outros quatro acusados de receber dinheiro para desviar fígados

Ana Claudia Costa, Ediane Merola, Maria Elisa Alves, Simone Miranda* e Taís Mendes

Policiais federais da Delegacia de Repressão a Crimes Fazendários deflagraram ontem a Operação Fura-Fila, para combater irregularidades no sistema de fila única de pacientes à espera de um transplante de fígado. Segundo as investigações, iniciadas a partir de uma série de reportagens do GLOBO, em 2003, médicos da equipe de transplantes do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (Fundão) participavam de um esquema para beneficiar pacientes, que eram operados na maioria das vezes numa clínica particular, antes de outros doentes que estavam há mais tempo aguardando por um órgão. Agentes prenderam, em casa, o cirurgião Joaquim Ribeiro Filho, ex-coordenador do programa Rio Transplante, ex-chefe da equipe de transplantes de fígado do Hospital do Fundão e coordenador da Câmara Técnica do Fígado no Estado do Rio. De acordo com a PF, ele recebeu R$200 mil para operar uma paciente, cujo nome não foi revelado.

Além de Joaquim, outros quatro médicos de sua equipe foram denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF). Os agentes cumpriram nove mandados de busca e apreensão e recolheram documentos no consultório e na casa do ex-coordenador do Rio Transplante. O esquema, segundo o superintendente da PF do Rio, Valdinho Jacinto Caetano, consistia em colocar em primeiro lugar na fila um paciente que não necessitava do transplante. A equipe de Joaquim atestava que o órgão designado para essa pessoa estava em más condições - o chamado fígado marginal - e que, por isso, o paciente havia recusado o transplante. O mesmo órgão - que na verdade estava em perfeitas condições para ser transplantado - era desviado para um paciente bem atrás na fila única por ordem cronológica. A cirurgia era feita na Clínica São Vicente, na Gávea, ou no próprio Hospital do Fundão.

Equipe trabalhava com órgãos ruins

Na maior parte do país, as equipes que fazem transplantes de fígado não trabalham com órgãos marginais, justamente para evitar a manipulação da fila. Segundo a coordenadora do Rio Transplante, Ellen Barroso, os hospitais São José do Avaí, em Itaperuna, e Geral de Bonsucesso (HGB), por exemplo, raramente transplantam fígados que não estejam em perfeitas condições, prática que era comum na equipe de Joaquim.

Além da acusação de não respeitar a fila, Joaquim e outros quatro médicos do programa de transplantes de fígado do Fundão - Eduardo de Souza Martins Fernandes, Giuliano Ancelmo Bento, João Ricardo Ribas e Samanta Teixeira Basto - foram denunciados por condutas ilícitas como tráfico de influência, peculato e enriquecimento com prejuízo para os cofres públicos. Enfermeiros e outros médicos envolvidos em transplantes hepáticos no Hospital do Fundão e na São Vicente também estão sendo investigados e poderão ser denunciados.

A prisão preventiva de Joaquim foi decretada pela 3ª Vara Federal Criminal do Rio, a pedido do procurador da República Marcello Miller, que considerou a medida "necessária à ordem pública e ao curso do processo, pois ele (o médico) já vem usando a influência sobre a equipe de transplantes hepáticos do Hospital do Fundão para dificultar a apuração dos fatos".

Em 2003, o paciente Jaime Ariston, irmão do então secretário estadual de Transportes, Augusto Ariston, recebeu um fígado, mesmo ocupando o 71º lugar na fila única, como constatou depois uma auditoria do Ministério da Saúde. A irregularidade, denunciada pelo GLOBO, ocorreu dois dias após Joaquim ser nomeado coordenador do Rio Transplante pelo então secretário estadual de Saúde, Gilson Cantarino - preso no dia 15 passado na Operação Pecado Capital, desencadeada pelo Ministério Público para apurar o desvio de quase R$70 milhões durante o governo Rosinha Garotinho. Na época, Joaquim alegou que o fígado recebido por Jaime era marginal e que ele era o primeiro da fila que aceitava receber órgãos em más condições. Segundo a auditoria, a fila paralela era ilegal.

Internado no Hospital do Fundão, Jaime Ariston morreu logo após a cirurgia. Ele estava à espera de um fígado havia um ano e três meses.

A direção do Hospital do Fundão informou em nota que vai abrir sindicância para apurar o ocorrido. Também em nota, a direção da Clínica São Vicente informou que apenas oferece suas instalações para os transplantes e que não tem qualquer interferência na distribuição de órgãos.

Advogada nega favorecimento

O advogado Paulo Freitas, que integra a equipe que defende Joaquim, entrou na Justiça com pedido de habeas corpus para o médico. De acordo com o MPF, caso seja concedido o habeas corpus, o órgão vai recorrer. A advogada Simone Kamenetz, que também representa Joaquim, disse que as informações divulgadas pela PF sobre seu cliente não são verdadeiras. Segundo ela, desde 2003 foram feitos pedidos para que o médico fosse ouvido pela PF, o que não teria ocorrido:

- Ele nunca foi ouvido e o que está saindo na imprensa não é verdade. Existe uma investigação em curso. Essa história de favorecimento não é verdade. Ele é um médico combativo e agora é preso, acusado de influenciar a equipe.

Além do caso de Jaime Ariston, a PF descobriu outros dois semelhantes. Um deles foi o de Carlos Augusto de Alencar Arraes, filho do falecido ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes. Ele ocupava a 65ª posição na fila. Arraes disse em nota que seu transplante "foi consumado em cumprimento a decisão judicial que deu prioridade ao caso" e que "o órgão poderia ter se perdido em razão de não haver outro paciente em condições de recebê-lo".

* Do Extra

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