Título: Cabral, o alcaide
Autor: Autran, Paula
Fonte: O Globo, 29/07/2008, Rio, p. 13

Governador assume papel de prefeito em áreas como ordem urbana, transporte e saúde.

Às vésperas das eleições municipais, o cobiçado posto de prefeito ainda é oficialmente ocupado por Cesar Maia. Mas quem vem exercendo boa parte das políticas públicas e atividades inerentes ao cargo é o governador Sérgio Cabral. Eleito em 2006 com 58,54% dos 3.109.172 votos da capital no segundo turno, Cabral aos poucos vai ocupando o território de Cesar em áreas como o combate à desordem urbana (com programas como CopaBacana, IpaBacana e BarraBacana) e ao transporte pirata no município (um convênio passou esta atribuição ao Detro, já responsável por esse trabalho no âmbito intermunicipal), assim como a saúde básica (com a construção de nove Unidades de Pronto-Atendimento 24 horas, as UPAs, que até 2010 devem chegar a 40). O governador também já anunciou a construção do Parque Bossa Nova, no terreno do 23º BPM (Leblon) e inaugurou um sistema de internet sem fio gratuita (wi-fi) na orla de Copacabana. Sem contar a presença - e o patrocínio - em eventos como a Conferência Internacional de Física e Semicondutores que vai até 1º de agosto no Riocentro, com a participação de três prêmios Nobel, e onde o governador aparece como o anfitrião da cidade. Ele também assinará o termo de compromisso de apoio do Rio de Janeiro ao 29º Congresso Brasileiro dos Fundos de Pensão, que vai acontecer na cidade após muitos anos.

- Tem gente que já brinca dizendo que Cesar Maia, de tão ausente, é o ex-prefeito em exercício. Ele deixou um vácuo, e alguém tem que ocupar este espaço - observa a cientista política Lucia Hippolito.

Bethlem diz que intenção é colaborar

Para o subsecretário estadual de Governo, Rodrigo Bethlem - que está à frente de operações diárias contra a desordem urbana em bairros como Copacabana, Ipanema e Barra -, a intenção não é "tomar espaço da prefeitura de assalto", mas colaborar. Tanto que o chamado choque de ordem vem sendo feito com equipes como as da Guarda Municipal e da CET-Rio, assim como as do Detro contra as vans piratas.

- Em tese, esta é uma ação de responsabilidade da prefeitura. Mas a orientação do governador Sérgio Cabral é não discutir se a causa é federal, estadual ou municipal, o que irrita a população. E, à medida em que colaboramos na solução desses problemas, fazemos uma ação preventiva contra a criminalidade e de proteção ao ambiente econômico, que são atribuições nossas - diz Bethlem.

O presidente da Sociedade Amigos de Copacabana, Horácio Magalhães, concorda:

- A ordem urbana é questão do município, mas o estado não pode se furtar a ajudar. Até porque ordem transmite segurança à população. Às vezes o poder público perde tempo discutindo competências. Mas o importante é que o trabalho seja feito.

Onofre: vans não eram prioridade

Que o diga o presidente do Detro, Rogério Onofre, que, desde o início do governo Cabral, fechou convênio com a prefeitura do Rio para estender a fiscalização das vans intermunicipais às municipais. Este trabalho, até cerca de dois anos atrás, vinha sendo feito pela Superintendência Municipal de Transportes Urbanos (SMTU), que virou uma subsecretaria da pasta dos Transportes. Desde janeiro de 2007, das 12.220 apreensões feitas pelo Detro, metade foi registrada na capital.

- O combate ao transporte pirata não vinha sendo prioridade para a prefeitura, por falta de pessoal e uma certa negligência. E nós entramos nesta árdua missão, que envolve tráfico e milícias - diz Onofre.

No caso das UPAs, a presidente do Cremerj, Márcia Rosa de Araújo, explica que, ao atender casos simples e de emergência - que seriam atribuições do município - os hospitais acabam sendo um pouco desafogados:

- A rede pública do Rio está abandonada e é insuficiente para a população. As UPAs não são uma solução, mas amenizam o problema.

Márcia também chama a atenção para a briga em torno do responsável pelo mosquito da dengue. Neste sentido, o secretário estadual de Saúde, Sérgio Côrtes, anunciou recentemente a realização de um concurso para a contratação de uma equipe permanente de mata-mosquitos. Os bombeiros também foram mobilizados para atuar neste combate.

Tanta suposta intromissão não incomoda o prefeito Cesar Maia.

- Quanto mais investirem no Rio, melhor. Quem deveria reclamar são os prefeitos de outros municípios - disse Cesar, acrescentando que a questão do transporte pirata é policial e que os programas de controle urbano são ações contra menores infratores, de responsabilidade estadual.

Cabral, por sua vez, afirmou que "o estado assume iniciativas onde há demandas da população e carência de prefeituras para atendê-las, sejam da capital ou do interior".

No ano passado, o estado passou à prefeitura diversas atividades: transferiu a administração da Linha Vermelha para o município, assim como a Lagoa Rodrigo de Freitas e os parques do Grajaú e da Chacrinha, além do saneamento da Zona Oeste. Também foi feita a transferência da fiscalização do trânsito da PM para a Guarda Municipal em parte da cidade.

Segundo a cientista política Lucia Hippolito, existe hoje uma grande confusão entre o que é atribuição federal, estadual e municipal:

- No Rio, que foi capital, é pior. O máximo da caricatura é o Teatro Municipal pertencer ao estado. É preciso repensar o pacto federativo, que divide as atribuições na Constituição.

Para Marcos Flávio Gonçalves, assessor do superintendente-geral do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam), o artigo 23 da Constituição estabelece que itens como saúde, educação e meio ambiente, entre outros, são de competência comum às três instâncias de governo.

- Mas deveriam ter sido feitas leis complementares fixando normas para a cooperação entre União, estados e municípios, definindo as atribuições de cada instância, o que não aconteceu na maioria dos casos.