Título: A arma que vem do país ao lado
Autor: Werneck, Antonio
Fonte: O Globo, 04/08/2008, Rio, p. 10

Metralhadora desviada do Exército boliviano abastece traficantes cariocas

Antonio Werneck

Anovidade agora entre os traficantes dos morros e favelas do Rio é uma metralhadora calibre .30 (7,92 x 57mm), modelo Lehky Kulomet ZB, fabricada na antiga República da Tchecoslováquia, que é capaz de derrubar até aeronaves. Arma de guerra de uso restrito de militares, a metralhadora foi fabricada para ser um importante apoio de infantaria e impedir o avanço de tropas inimigas. Mas o que as investigações das autoridades policiais do Rio e de Brasília revelam é que a arma passou a ser desviada dos quartéis do Exército boliviano, seguindo para o Paraguai e, de lá, para morros cariocas, depois de atravessar a fronteira com Foz do Iguaçu, no Paraná.

Somente nos primeiros sete meses deste ano, nove metralhadoras .30 foram recolhidas com traficantes do Rio, revelou uma estatística da Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos (Drae), da Polícia Civil. Duas estavam com traficantes do Complexo do Alemão, na Penha; duas no Morro do Dendê, na Ilha do Governador; e o restante reforçava o arsenal do tráfico dos morros da Mineira (Estácio), Dona Marta (Botafogo), Manguinhos e São João (Engenho Novo). No ano passado, outras dez metralhadoras iguais foram recolhidas pela polícia das mãos dos traficantes - duas delas no Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, que vive uma guerra entre duas quadrilhas rivais. Todas tinham gravado na coronha o brasão do Exército boliviano.

Balas atingem 1.500 metros de distância

O assunto é tão grave que tem sido discutido pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), pelo Setor de Inteligência do Comando do Exército e pela Divisão de Combate ao Crime Organizado (Dcor), a unidade central de repressão ao crime da Polícia Federal, em Brasília. Em sucessivas trocas de informações reservadas, investigadores das três agências têm buscado respostas para os desvios com a Subsecretaria de Inteligência (SSI) da Secretaria de Segurança fluminense e com a Drae, os maiores interessados em reprimir a chegada das armas ao Rio.

Uma bala disparada pela metralhadora pode atingir um alvo a 1.500 metros de distância. E com precisão maior do que os tiros de fuzis: uma metralhadora.30 pode disparar mais de 50 tiros automaticamente. Numa guerra, o carregador (o pente de munição) pode ser substituído por uma esteira com capacidade para abrigar muitas balas.

- As trocas de informações entre nós têm sido constantes. Posso dizer que, nas mãos dos traficantes ou de qualquer outra pessoa, a metralhadora .30 é muito perigosa. Não só pelo seu calibre, mas por ser uma arma automática que despeja rajadas constantes - explicou o delegado Carlos Oliveira, titular da Drae.

No ano passado, o assunto chegou a causar mal-estar entre diplomatas brasileiros e bolivianos. Acusado dos desvios, o governo boliviano, por meio de sua embaixada, protestou. Foi necessário que a Secretaria de Segurança do Rio enviasse a Brasília um detalhado dossiê sobre as apreensões e a presença do armamento com os traficantes cariocas. A indisposição inicial entre os governos acabou numa reunião realizada em La Paz, na Bolívia, com representantes das duas polícias federais. Agora, estuda-se um acordo bilateral. Segundo investigações, apenas de um quartel militar da Bolívia teriam sido desviadas 40 metralhadoras.

- É uma arma muito poderosa. Se você levar em consideração que o traficante normalmente está no alto, atirando para baixo, é muito difícil para o policial um avanço seguro - afirmou o delegado Alfredo Dutra, chefe da Delegacia de Repressão ao Tráfico de Armas da Polícia Federal.

Num relatório de Inteligência (número 631/07), de outubro de 2007, enviado à Polícia Federal, ao Exército e à Abin, o assunto é tratado pela Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública como de grande gravidade. O documento relaciona as principais apreensões e lembra que é "irrefutável a existência de armas de fogo e munição oriundas da Bolívia em poder de criminosos atuantes no Estado do Rio de Janeiro".

Ainda segundo o documento de posse da Polícia Federal, "este posicionamento do governo da Bolívia se contrapõe às apreensões de metralhadoras calibre .30 nos estados do Rio, do Paraná e de São Paulo, inclusive identificadas pelo Departamento da PF, órgão responsável pelo combate ao contrabando de armas de fogo e munição".

Fuzis estão entre as armas desviadas

Segundo um dos relatórios aos quais O GLOBO teve acesso, os desvios incluem fuzis calibres 7,62; fabricados pela empresa espanhola Santa Bárbara. Rastreamento feito pela Interpol, em Brasília, indica que as armas saíram da Espanha, em dezembro de 1989, destinadas ao Ministério do Interior da Bolívia e fariam parte de um lote de 750 fuzis.

Na semana passada, após uma investigação que durou 50 dias, agentes da PF do Rio interceptaram, em Volta Redonda, um ônibus de turismo, que saíra de Foz do Iguaçu com destino ao Rio. Escondidas no tanque de combustível, estavam drogas, armas e munição. O material seria entregue aos traficantes da Favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, para ser distribuído aos bandidos de outros morros. Entre as armas recolhidas, havia uma metralhadora .30 com o brasão do Exército boliviano.

COLABOROU Daniel Brunet