Título: Isso é mais uma corrida de revezamento do que solo
Autor: Berlinck, Deborah
Fonte: O Globo, 31/07/2008, Economia, p. 23

GENEBRA. O chanceler brasileiro, Celso Amorim, não concorda com a visão de que o Brasil errou ao apostar tudo na Rodada de Doha. Ao GLOBO, ressaltou que só em negociações multilaterais é possível reduzir os subsídios agrícolas. Amorim disse ainda que deve retomar conversas com o bloco europeu já em setembro.

Os críticos dizem que o senhor cometeu um erro estratégico ao apostar todas as fichas na Rodada de Doha.

CELSO AMORIM: As coisas que mais interessavam ao Brasil só poderiam ser obtidas na Rodada de Doha, entre elas, os subsídios agrícolas, que nos levaram a acionar o sistema de solução de controvérsias duas vezes, nos casos de açúcar e algodão. Isso jamais pode ser obtido num acordo bilateral com Estados Unidos, União Européia (UE) ou quem quer que seja. Não foi uma opção só nossa. Quem faz essa crítica pensa na negociação entre Mercosul e UE. Mas o mandato da UE diz que só se pode chegar a um acordo com o Mercosul depois do fim da Rodada.

Com a paralisação da Rodada, ficam congeladas também as negociações UE-Mercosul?

AMORIM: Não sei. Pode ser que à luz da paralisação, eles (os europeus) revejam esse mandato. E aí também estaremos dispostos a negociar. Sempre sentimos neles uma disposição (para mudar o mandato). Agosto é mês de férias na Europa. Em setembro, provavelmente, vamos voltar a conversar.

O G-20 mostrou o seu limite, com a divisão entre Brasil e Índia no tema que provocou o fracasso das negociações. Qual o futuro do grupo?

AMORIM: Não foi a divisão do G-20 que provocou o fracasso. O mecanismo de salvaguardas especiais (pivô do fracasso) foi um tema sobre o qual o G-20 nunca concordou. Só chegamos ao ponto que chegamos por causa do G-20, que conseguiu 90% das coisas. Você pode dizer: o G-20 não foi suficiente para resolver a Rodada. Mas não foi ele que prejudicou. Ao contrário, ajudou muitíssimo.

E o futuro?

AMORIM: Acho que o G-20 tem de continuar discutindo. Havia no G-20 países contrários à salvaguardas e os queriam liberdade total para aplicá-las. Acho que uns como os outros - e não é o caso do Brasil, que sempre teve uma atitude intermediária - terão visto que essas posições mais extremadas, mesmo justificadas, não levam a um acordo. Quem sabe agora não conseguimos?

O senhor discutiu isso com Kamal Nath (ministro de Comércio da Índia, com quem Amorim se encontrou ontem)?

AMORIM: O desejo dele é manter o G-20.

Os mesmos obstáculos na negociação agrícola da Rodada surgem entre Mercosul e UE. Quais as chances reais de avanço?

AMORIM: Não sei quem inventou isso. Em Doha um obstáculo foram os mecanismos de salvaguardas especiais. O grande problema de Mercosul e UE é o equilíbrio entre nossos interesses e os deles em produtos industriais. Teremos de conversar dentro do Mercosul, mas sobre isso não houve impasse.

E o Mercosul, como fica nisso tudo ?

AMORIM: Conversando...

O Brasil vai entrar em setembro numa disputa com os EUA por causa do etanol?

AMORIM: Preciso ouvir a apreciação jurídica. Mas do ponto de vista político, eu queria entrar com essa ação há muito tempo. A indústria (do etanol) é que não queria. Agora dizem que vão pedir ao Itamaraty. Não vejo problema. Provavelmente vamos pedir consulta (passo anterior à disputa).

O senhor fez as contas de quanto o Brasil deixou de ganhar com o fracasso da Rodada?

AMORIM: O Brasil, o Mercosul e o mundo em desenvolvimento deixam de ganhar alguns bilhões de dólares.

É possível preservar o que já foi acordado?

AMORIM: Possível é, mas exigiria que se trabalhasse muito rapidamente. O que hoje nos parece um bom acordo, daqui a dois anos pode não parecer. Estamos tão perto, que acho que se houvesse uma decisão política de terminar agora, não seria impossível reconvocar os ministros em outubro para terminar a Rodada.

Susan Schwab, dos EUA, diz que há formas de se avançar além do "ou tudo ou nada".

AMORIM: Este é um acordo que tem de ser assinado pelos 153 membros da OMC. Se um objetar, não há acordo.

O comércio global entra em fase de incerteza?

AMORIM: Ele continua na fase de incerteza de antes. Foi muito grave, mas a OMC não acabou, nem o sistema multilateral.

Foi uma frustração pessoal não poder fechar a Rodada?

AMORIM: Foi. Mas isso é mais uma corrida de revezamento do que solo. Preparamos o caminho. Depois vem outro, pega o bastão e leva adiante. Se for rápido, de repente eu mesmo posso levar o bastão. (Deborah Berlinck)