Título: Por um fio
Autor: Berlinck, Deborah
Fonte: O Globo, 29/07/2008, Economia, p. 21

Discussões em Genebra entraram pela madrugada e serão retomadas ainda hoje.

ARodada de Doha, como são chamadas as negociações para abertura do comércio mundial, estava ontem à noite à beira do colapso. Três dos sete países fundamentais para fechar o acordo passaram o dia numa verdadeira guerra de acusações: Estados Unidos, Índia e China.

O ambiente era tão pesado que o porta-voz da Organização Mundial do Comércio (OMC), Keith Rockwell, só tinha isso para anunciar de madrugada:

- A situação está muito tensa. O resultado é incerto.

Pouco antes de duas horas da madrugada em Genebra (21h no Brasil), o ministro de Comércio da Índia, Kamal Nath, deixou a sala de reuniões, e informou que os encontros prosseguem hoje.

- Estamos por um fio - sintetizou o chanceler brasileiro Celso Amorim ao sair de uma das várias reuniões de ontem. Mas, depois disso, as conversas ainda avançaram pela madrugada.

O grande temor é que, se a Rodada fracassar, a própria OMC pode cair num limbo de pelo menos três anos. Será também um duro golpe para o Brasil, que apostou no pacote em negociação como o único meio possível no momento para melhorar o acesso dos produtos agrícolas brasileiros a mercados de países ricos, como EUA e União Européia (UE).

Brasil e Austrália tentaram mediar um acordo entre Índia e China com os americanos, no desespero para salvar a Rodada. Enquanto isso, o diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC), Pascal Lamy, reunia-se com cada um dos sete países individualmente e costurava um novo texto. Amorim justificou o apoio do Brasil ao pacote inicial de Lamy, que tem também o aval de EUA, Europa e Austrália, mas foi rejeitado por China e Índia e sofreu críticas do Japão.

- Apoiamos (o pacote do Lamy) porque consideramos que é o melhor para o Brasil e para o Mercosul. Se apoiasse posições extremadas, teria que trair interesses brasileiros e de sócios como Paraguai, Uruguai e mesmo Argentina - disse.

Os Estados Unidos acusaram abertamente China e Índia de estarem provocando o fracasso da Rodada. Os americanos se queixaram que abriram mão de muita coisa para possibilitar um acordo, mas que China e Índia não estavam fazendo o mesmo.

- Os Estados Unidos foram um dos países que engoliram muito e aceitaram o pacote (apresentado na sexta-feira por Lamy) - disse David Shark, um representante americano.

Frisando que "a maioria" dos países integrantes da OMC aceitava o pacote, o americano disparou:

- Infelizmente uma economia emergente importante, a Índia, imediatamente rejeitou o pacote, e em seguida outra economia emergente, a China, abandonou. Suas ações colocaram toda a Rodada no seu mais grave risco, em sete anos - disse.

O que pode fazer ruir a Rodada é agricultura. Mais precisamente as chamadas salvaguardas especiais para países em desenvolvimento. Por este mecanismo, países em desenvolvimento teriam direito a elevar tarifas - isto é, taxar as compras de outros países -- quando houver um surto de importação de produtos agrícolas.

China e Índia, alegando que precisam proteger milhões de pequenos agricultores, dizem que não há acordo sem isso.

O texto de Lamy, que é a base para toda a negociação, aceita criar as salvaguardas para agricultura - uma idéia que o Brasil não gosta, mas tolera para não bater de frente com Índia e China, aliados-chaves do G-20. O desacordo é sobre grau de flexibilidade que países em desenvolvimento terão para aplicar as salvaguardas. O que configura surto? A partir de que nível poderão acionar o mecanismo? Até quanto poderão elevar suas tarifas?

China e Índia defendem acionar o mecanismo quando as importações subirem 10% do volume da média dos últimos três anos. Já EUA querem que salvaguardas só sejam acionadas quando as importações subirem 40%, acima da média dos últimos três anos, que é o que está na proposta de Pascal Lamy. Acionado o mecanismo, China e Índia querem poder elevar tarifas acima do teto consolidado na Rodada Uruguai (que antecedeu a de Doha). EUA não aceitam.