Título: A independência dos juízes
Autor: Mattos, Fernando Cesar Baptista de
Fonte: O Globo, 05/08/2008, Opinião, p. 7

Já há algum tempo as operações empreendidas pela Polícia Federal têm ocupado espaço nos noticiários de televisão e nas páginas dos jornais. Muito se discute sobre alegados excessos praticados pelos policiais e também sobre a atuação do Poder Judiciário. De um lado, há questionamento sobre a exposição pública de pessoas investigadas e o uso de algemas, por exemplo; de outro, a atuação do Poder Judiciário, não raro, é identificada única e exclusivamente com a soltura de presos. Um exame mais atento e aprofundado dos fatos, sem perder de vista o contexto em que se inserem, revela que em ambos os casos há algum exagero e mistificação.

Não se trata de negar que desvios possam ocorrer durante a ação policial ou que habeas corpus possam beneficiar investigados. Mas parece ser a todo momento ignorado que em qualquer operação policial há a decisiva intervenção do juiz criminal. De fato, não há (não pode haver) prisão temporária ou preventiva que não seja decretada pelo juiz competente, simplesmente porque a polícia não pode prender nenhum investigado sem que um mandado (ordem) de prisão tenha sido regularmente expedido pelo juiz. Todos os atos praticados pela polícia, a partir de então, destinam-se ao cumprimento da ordem judicial. E se há prisão em flagrante, esta há de ser comunicada em vinte e quatro horas ao juiz, que apreciará a legalidade e será responsável pela manutenção (ou o relaxamento) da prisão a partir de então.

Não é intenção deste artigo enaltecer a atuação do juiz ou desmerecer a polícia. Cada instituição tem uma função a desempenhar e somente uma investigação bem realizada dá ao juiz segurança para decidir. Mas a omissão da figura do juiz na divulgação das operações policiais é uma das causas de exageros e mistificações antes referidos. De fato, quando há ênfase sobre os supostos abusos da polícia (em tais operações), parece ser esquecido que há um juiz a quem os investigados podem apresentar suas reclamações e tribunais a quem recorrer. Já quando a ênfase está nas prisões efetuadas, transmite-se a idéia de que não há intervenção do Judiciário, quando é por ordem deste que as prisões acontecem ou deixam de acontecer.

Se essa é a causa das mistificações, piores são seus efeitos. À medida que a figura do juiz é omitida, surge a falsa impressão de que os investigados nas referidas operações estão sujeitos a toda sorte de arbítrio. E assim (a partir de uma premissa falsa) nascem propostas como o controle ou restrição das interceptações telefônicas (que têm de ser autorizadas judicialmente), a restrição a diligências de busca e apreensão (que têm de ser autorizadas judicialmente) e, quem sabe, a revisão da legislação sobre abuso de autoridade. Todas essas propostas estão em andamento e devem ser causa de profunda preocupação. Afinal, será possível uma justiça penal efetiva sem que as instituições sejam dotadas de mecanismos fortes para a investigação do crime globalizado?

Finalmente, se o juiz está no centro desse processo crucial para a sociedade, é óbvio que sua independência deve ser fortalecida, para que possa decidir sobre prisões e também para controlar, se for o caso, abusos. O juiz é quem está imediatamente diante dos fatos e dos acusados. Aos juízes, que são homens e mulheres, cidadãos que vivem entre nós, devem os tribunais garantir segurança (e esta é uma questão importantíssima, que deveria merecer toda a preocupação das autoridades judiciárias), para que decidam com independência. A sociedade deve estar vigilante quanto a qualquer proposta tendente a reduzir a independência da magistratura, pois, sem magistratura independente, em todas as instâncias, nada restará senão a perpetuação de privilégios e da desigualdade dos quais estamos, todos, cansados.

FERNANDO CESAR BAPTISTA DE MATTOS e MARCELLO ENES FIGUEIRA são juízes e dirigentes da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).