Título: Tango a três
Autor: Oliveira, Eliane; Figueiredo, Janaína
Fonte: O Globo, 05/08/2008, Economia, p. 21

Chávez participa de reunião de Lula e Cristina Kirchner e irrita delegação brasileira

Eliane Oliveira* e Janaína Figueiredo**

Oque poderia ter sido uma visita histórica do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que desembarcou em Buenos Aires com a maior missão empresarial do Brasil na Argentina, foi encerrado com um encontro trilateral com os presidentes Cristina Kirchner e Hugo Chávez, da Venezuela. Chávez propôs uma agenda Buenos Aires-Brasília-Caracas, que inclua, por exemplo, um Trem do Sul e uma companhia aérea estatal, integrada pelos três países.

Segundo fontes da Casa Rosada e do governo brasileiro, a chegada do venezuelano estava prevista originalmente para hoje, no marco de uma viagem com Cristina à cidade boliviana de Tarija, onde ambos darão seu respaldo ao presidente Evo Morales, mergulhado numa delicada crise política interna. Ao ser informado sobre a reunião entre os presidentes de Brasil e Argentina, no fim da semana passada, Chávez decidiu pegar carona, atitude que irritou tanto o Itamaraty quanto o Planalto. A atmosfera de desorientação provocada pela presença inesperada de Chávez era tanta que, durante todo o dia ontem, funcionários do governo brasileiro não se atreviam a confirmar o encontro trilateral.

Após muitas idas e vindas, os três presidentes conversaram numa sala do Palácio San Martín, sede da chancelaria argentina. Segundo fontes brasileiras, Lula estava se preparando para ir embora quando, finalmente, foi convencido por sua colega argentina a permanecer por mais alguns minutos e participar da reunião com Chávez.

Lula partiu sem fazer declarações. Já interlocutores do presidente venezuelano fizeram questão de revelar os assuntos tratados: Chávez defendeu a necessidade de relançar o projeto do Gasoduto do Sul, criar uma agenda trilateral e dar impulso a projetos ambiciosos, como uma linha ferroviária que una Buenos Aires e Caracas, passando pelo Brasil, e o lançamento de uma companhia aérea trinacional, na esteira da decisão argentina de reestatizar as Aerolíneas Argentinas.

Segundo o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, os três conversaram sobre fertilizantes e decidiram que o tema é prioritário na região, tendo em vista o encarecimento dos custos dos produtores. Amorim afirmou que Lula, Cristina e Chávez voltarão a se reunir no dia 6 de setembro, em Pernambuco, na inauguração de uma fábrica de energia eólica argentina:

- O presidente Lula já havia convidado a presidente Cristina Kirchner para participar das comemorações da Independência, mas ficou acertado que, na véspera, ela e o presidente Chávez se reunirão com o presidente Lula, em Pernambuco.

Ontem, ao abrirem o encontro empresarial "Argentina-Brasil: uma aliança produtiva chave", que reuniu cerca de 400 empresários dos dois países, Cristina e Lula mencionaram o fracasso da Rodada de Doha, que teve como ponto forte as divergências entre brasileiros e argentinos sobre produtos industriais. Enquanto Lula propôs tentar acordos bilaterais, Cristina justificou a posição de seu país:

- Nas negociações multilaterais, temos que saber o que vamos receber e o que vamos dar. Não podemos afogar a Argentina e sua capacidade industrial.

Lula foi mais conciliador. Disse que Brasil e Argentina são a espinha dorsal da integração tanto do Mercosul quanto da América do Sul. Mas reconheceu que é preciso respeitar a soberania de cada país.

Brasil mantém aposta na Argentina

Ambos decidiram iniciar um projeto de desenvolvimento. Lula conclamou os argentinos a se unirem ao Brasil em busca de acordos bilaterais e anunciou sua confiança no governo de Cristina, que passa por seu pior momento, após quatro meses de crise com os produtores rurais do país:

- O Brasil continua a apostar na Argentina, em seus trabalhadores, em seus empresários e em seu governo.

Lula lembrou que o comércio em moeda local (peso ou real), que começa a funcionar no próximo mês, pode ser o "germe de uma futura integração monetária". O presidente citou ainda a crise de alimentos no mundo, defendeu políticas comuns e disse que os dois países juntos têm condições de resolver o problema.

Lula convidou os empresários a investirem no Brasil, lembrando que, além do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que prevê R$504 bilhões até 2010, há US$400 bilhões orçados pela indústria até 2012. E citou os 4,7 mil quilômetros de ferrovias a serem construídas no Brasil, um trem de alta velocidade que começa a ser licitado em novembro, duas refinarias, quatro siderúrgicas, projetos de reflorestamento para papel e celulose e uma indústria naval que exige a contratação, até 2014, de 200 navios:

- Queremos compartilhar essas possibilidades com a Argentina.

Os discursos de Lula e Cristina foram aplaudidos pelos empresários, mas também surgiram críticas, sobretudo à falta de regras claras na Argentina. O presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, disse que os empresários manterão os investimentos no país vizinho, mas ressaltou:

- É necessário, porém, a redução da burocracia.

(*) Enviada especial (**) Correspondente