Título: Um dos objetivos é ensinar a montar e gerenciar boca-de-fumo
Autor: Ramalho, Sérgio; Araújo, Vera
Fonte: O Globo, 10/08/2008, Rio, p. 21

Aulas incluem ainda lições sobre como atravessar valões, se esconder na mata e suportar torturas

Não importa a compleição física ou o sexo. O que conta é a capacidade de iniciativa, a competitividade e a vontade de montar sua própria ¿empresa¿ (boca-de-fumo). Longe de serem regras de empreendedorismo ou gestão de negócios, essas são as qualidades exigidas de quem pretende fazer o curso de treinamento para gerência e segurança do tráfico adotado em pelo menos oito favelas do Rio.

Com duração de seis a 12 meses, o curso é ministrado, geralmente, por ex-integrantes de tropas de elite das Forças Armadas, como ex-pára-quedistas e ex-fuzileiros navais. A faixa etária das turmas, que devem ter até 14 integrantes, começa a partir de 11 anos.

Dois adolescentes que fizeram o curso em favelas de duas facções criminosas contaram ao GLOBO que, para se habilitar, passaram pelos estágios de fogueteiros (responsáveis por soltar fogos para alertar para a chegada da polícia), ¿aviões¿ (transportadores de drogas), cargueiros (levam para a favela as drogas encomendadas) e ¿vapores¿ (encarregados de vender drogas). Os dois afirmam que não foram aliciados pelo tráfico, e sim que atuar no crime era o único trabalho disponível na comunidade onde moravam.

¿ Ninguém me ofereceu nada. Eu fui porque quis. Fui fogueteiro, ¿vapor¿ e virei cargueiro. Também trabalhei de ¿avião¿. Por último, depois da ¿graduação¿ (curso), fui ser gerente ¿ disse K., um dos alunos.

Ao contrário do que se possa imaginar, não é subir um morro com um fuzil AR-15 ¿ que pesa quatro quilos sem o carregador ¿ a parte mais difícil do curso. São as sessões de tortura psicológica e as aulas de esconderijo, em valões fétidos, as partes mais complicadas.

¿ Perguntaram se eu queria ficar 12 meses no mato. Pensei: não adiantava nada estar ali (na favela) e não saber atirar, usar uma arma. Era um bom treinamento. Não podia estar despreparado. Formaram uma turma, mas ninguém era obrigado. Agora, quem aceitasse ir para o mato não podia voltar atrás. Ele (o instrutor) sabia que todo mundo ia correr quando começasse o treinamento. A partir do momento em que se aceita, não dá para correr ¿ diz K., franzino, de aproximadamente 1,50 metro e 45 quilos.

O jovem passa por pelo menos oito estágios: atravessar valões, aprender a se esconder na mata ou na favela, controlar a mente para não sucumbir às sessões de tortura, progredir nos morros, usar facas, manusear da pistola ao fuzil, montar armadilhas na mata e, por último, gerenciar um ponto de drogas.

¿ A primeira tarefa era nadar no valão. Foi o pior. Era podre. A gente só segura na arma depois de sete meses. É o que mais a gente quer. Eles davam o tom. Na última parte, nos ensinaram a montar a nossa própria boca. Era como montar uma empresa. Poucos conseguiram passar. Eu consegui ¿ conta K.

Para Y, o pior mesmo foi o terror psicológico:

¿ Era como brincar de polícia e bandido. A gente ficava numa casa sem nada, um tempão longe da família. Soltavam a gente de noite para os ¿alemães¿ (PMs) arregados (pagos pelo tráfico) pegarem a gente. Era para saber quem dava mole, vacilava. Era tudo armado, pois depois eles nos soltavam, mas a gente não sabia. Era só ¿esculacho¿ (humilhação), quando nos pegavam.

Y. lembra que os instrutores repetiam o tempo todo que eles não iam sobreviver:

¿ Eles diziam que queriam criar bichos. Poucos chegaram ao final.