Título: Campos de treinamento
Autor: Ramalho, Sérgio; Araújo, Vera
Fonte: O Globo, 10/08/2008, Rio, p. 21

Tráfico monta nas matas cursos para jovens integrantes de quadrilhas aprenderem técnicas de guerrilha e uso de armas

Sérgio Ramalho e Vera Araújo

O tráfico no Rio está investindo em jovens sem perspectivas de trabalho nas favelas para treinar, em áreas de Mata Atlântica, verdadeiros guerrilheiros. A informação de que traficantes estão montando esse tipo de curso é citada em relatório da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e foi obtida também pelos analistas da Coordenação de Segurança e Inteligência (CSINT), do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase). O documento da Abin foi elaborado com base em dados dos setores de inteligência das polícias Civil e Militar, que constataram o emprego desse tipo de tática em confrontos na mata na Rocinha, no Vidigal e nos morros do Chapéu Mangueira e da Babilônia (ambos no Leme).

Na Zona Sul, a principal facção a usar esse tipo de treinamento tem como principal reduto as favelas do Pavão-Pavãozinho (Copacabana) e do Cantagalo (Ipanema). De acordo com o relatório da agência, os instrutores são jovens das comunidades que passaram pelas Forças Armadas ou ainda estão prestando serviço militar. Agentes da CSINT descobriram que há casos de alunos de até 11 anos.

- Numa sociedade em que ser cidadão é poder consumir, ganhar R$1.500 por semana para trabalhar no tráfico de drogas vira, infelizmente, o principal atrativo para essa juventude. Ninguém quer receber R$415 (salário mínimo nacional) - disse o coordenador da CSINT, major da PM Alexandre Azevedo, que prepara um relatório a ser entregue à Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Segurança.

A proposta do diretor-geral do Degase, Eduardo Gameleiro, é a de usar as informações para melhorar o atendimento nas unidades do órgão, responsável pela aplicação de medidas socioeducativas a crianças e adolescentes infratores.

- Temos que usar esses dados para o bem-estar dessas crianças e adolescentes. O sentido da inteligência no Degase é pedagógico. Temos que criar programas para atendê-los melhor, a partir da realidade que eles vivem em suas comunidades.

Tráfico paga para jovens se alistarem

Segundo o documento da Abin, como incentivo, traficantes oferecem a jovens R$300 semanais para que ingressem no Exército ou na Marinha e, de preferência, se tornem pará-quedistas ou fuzileiros navais. Os mais aptos são alçados à posição de instrutores e passam técnicas de guerrilha, tiro e manutenção de armas aos mais novos das quadrilhas. O relatório acrescenta que esses jovens não se limitam a dar treinamento nas favelas de origem. Os mais capacitados dão aulas em comunidades aliadas e até elaboram planos de invasão em áreas dominadas por bandos rivais.

O documento da Abin também cita as rotineiras apreensões de material militar - armas, munição, roupas e barracas de acampamento - em trechos de mata em favelas como Dona Marta, em Botafogo. Dá informações ainda sobre a descoberta de manuais militares e cartilhas com táticas de guerrilha. Em 2002, O GLOBO revelou que, recém-saídos da caserna, ex-soldados e ex-cabos da Brigada Pára-Quedista do Exército (PQDs) treinavam traficantes em troca de até R$3 mil por aula ou R$8 mil por mês.

Traficantes da Rocinha também recebem instruções desse tipo e, segundo a Abin, vêm usando acampamentos na mata no alto da favela para esconder armas, drogas e munição. O relatório da agência frisa que o uso da estratégia vem crescendo como forma de evitar perdas de armas e drogas.

Integrantes da facção que controla a venda de drogas na Rocinha já usaram trilhas no trecho de Mata Atlântica para surpreender rivais no Morro do Vidigal. Segundo o relatório da Abin, os bandidos teriam colocado armadilhas, semelhantes às usadas por caçadores, em trilhas ligando as duas favelas. O objetivo: evitar que os caminhos fossem usados por bandos rivais e integrantes de unidades de elite das polícias Militar e Civil.

O titular da Coordenadoria de Recursos Especiais, delegado Rodrigo Oliveira, reconhece que o treinamento de jovens está se aprimorando:

- Quanto menos discernimento, maior o potencial para produzir o mal. Eles acabam fazendo o que o tráfico manda para subir na hierarquia.

As primeiras informações sobre esse treinamento surgiram em 2005, quando um órgão de inteligência do estado interceptou uma conversa entre dois traficantes marcando cursos para "gerente" do tráfico (no Vidigal) e para segurança de quadrilha (em Vigário Geral). Segundo uma fonte da polícia, acostumada a fazer operações na mata, os jovens cada vez mais usam técnicas de guerrilha:

- O pior disso tudo é que, para eles, não existe código de guerra. É violência crua. Usam pessoas como escudos e detonam explosivos de forma indiscriminada.