Título: Verba social na mira de ladrões
Autor: Franco, Bernardo Mello
Fonte: O Globo, 11/08/2008, O País, p. 3

CGU flagra quadrilhas que desviam recursos de programas federais nos municípios

Bernardo Mello Franco

No dia 31 de maio do ano passado, a prefeitura de Cunha, pequena cidade paulista perto da divisa fluminense, emitiu um cheque de R$486,55 para comprar merenda escolar. O dinheiro é do Programa Nacional de Alimentação Escolar, que repassa verbas federais para encher o prato de crianças e adolescentes da rede pública de ensino. Uma nota fiscal anexada à prestação de contas atestava a entrega de 108,12 quilos de carne moída. Mas os recibos preenchidos à mão e timbrados com o brasão do município revelam que o dinheiro foi para um pacote de carvão, oito quilos de contrafilé, caixa de fogos de artifício e engradado de cerveja.

Mais de três mil desvios de verbas

O desvio, que parece ter financiado um animado churrasco, foi detectado por inspetores da Controladoria Geral da União (CGU) e está entre os mais de três mil do último relatório do órgão, encarregado de fiscalizar o uso de recursos federais. Imerso num mar de irregularidades, o caso mostra uma mudança no foco da corrupção: desde que a Constituição de 1988 aumentou o poder das prefeituras, as quadrilhas municipais passaram a mirar cada vez mais os programas sociais. O governo avalia que os repasses mais vulneráveis são os ligados às áreas de saúde, educação e desenvolvimento social.

- Todos os ministérios padecem de falta de pessoal e estrutura para fiscalizar a aplicação dos recursos nos municípios. Na área social, onde os programas estão mais espalhados, o problema é ainda mais grave - reconhece o controlador-geral da União, ministro Jorge Hage.

A falta de controle nos ministérios é agravada pela fragilidade dos conselhos municipais, criados para integrar a sociedade local na fiscalização dos programas sociais. Por isso, a aplicação das verbas só é fiscalizada se a cidade for sorteada para receber os auditores da CGU. No ano passado, o órgão foi a 180 municípios e em todos encontrou problemas, desde erros técnicos na prestação de contas até fraudes mais graves, como o desvio de verbas da merenda escolar.

- Na maioria das cidades os conselhos foram cooptados por prefeitos e vereadores. Ou seja: não fiscalizam nada - resume Hage.

Abandono e superfaturamento

O último relatório da CGU flagrou casos de desperdício como o da prefeitura de Machado, em Minas Gerais, que usou R$85 mil do Ministério da Saúde para comprar um aparelho de raios X e uma processadora de revelação de filmes. Os auditores acharam os equipamentos abandonados há dois anos e meio, além de indícios de superfaturamento no valor pago pelas máquinas. Em Érico Cardoso, município baiano de dez mil habitantes, o controlador-geral da prefeitura chefiava um esquema que desviou repasses dos ministérios da Saúde e da Educação. A crença na impunidade era tão grande que o servidor usava empresas registradas em nome de parentes num esquema de fraudes. As licitações beneficiaram empresas relacionadas ao controlador-geral do município, justamente "o agente responsável por zelar pela boa aplicação dos recursos", anotaram os fiscais.

Como a CGU não pode punir os prefeitos, as denúncias vão para o Ministério Público, que formula ações criminais. A pedido do GLOBO, o órgão conseguiu identificar cinco gestores afastados pela Justiça por causa de irregularidades. Um é José Pereira Santos, o J. Pereira, prefeito de Águas Lindas (GO), no entorno de Brasília. Acusado de fraudar licitações, ele foi retirado do cargo em dezembro de 2005, mas voltou com uma liminar do Tribunal de Justiça do estado.