Título: O enigma chinês
Autor: Costa, Célia; Merola, Ediane
Fonte: O Globo, 19/08/2008, Rio, p. 12

Dois estrangeiros vítimas de seqüestro aparecem; há suspeitos, mas motivo do crime é mistério

Célia Costa, Ediane Merola e Vera Araújo

Apesar de já haver suspeitos de terem seqüestrado três chineses e o conselheiro da embaixada do Vietnã no Brasil, Vu Thanh Nam, na Estrada das Paineiras, no último sábado, a motivação do crime ainda é um enigma para a polícia do Rio. Dois chineses que ainda estavam desaparecidos foram localizados ontem e levados para a Delegacia Especial de Atendimento ao Turista (Deat), onde prestaram depoimento. Segundo o delegado titular da Deat, Fernando Veloso, a versão da dupla confirma a história contada pelas outras duas vítimas e ajuda as autoridades a entenderem melhor o caso. Depois de ter descartado a hipótese de assalto a turistas, a polícia agora trabalha com duas possibilidades: de o crime ter sido cometido a mando do traficante Fernandinho Beira-Mar ou estar relacionado a uma disputa por mão-de-obra chinesa. De acordo com o delegado, o alvo do seqüestro eram os chineses.

Jin Bao Hong, de 39 anos, e You Ben Gang, de 46, foram encontrados ontem, às 7h50m, pelo taxista Valmir Vieira de Souza, na Rua Leopoldina Rêgo, próximo à Cardoso de Moraes, em Ramos. Souza contou que eles estavam sujos, bastante machucados e nervosos. Como não falam português nem inglês, escreveram num papel a sigla CSA, numa referência à ThyssenKrupp CSA Siderúrgica do Atlântico, empresa na qual trabalham.

¿ Só entendia eles dizendo Itaguaí (a CSA fica em Santa Cruz). Como tinha acabado de ouvir a história no rádio, percebi que eram eles. Um deles estava com o rosto cortado. Estavam malcheirosos, com a roupa suja. Mas, como no Rio a gente vê de tudo, não me importei de parar ¿ disse Souza, que levou os dois até a siderúrgica, onde recebeu o pagamento pela corrida.

Jin e You foram seqüestrados no sábado, juntamente com o conselheiro vietnamita e o também chinês Liu Chang Hong. No domingo, o grupo, que era mantido em cativeiro numa cisterna na Vila Cruzeiro, no Complexo do Alemão, na Penha, conseguiu fugir. O diplomata voltou de táxi para o hotel onde estava hospedado, em Copacabana. Já Liu foi encontrado por volta das 22h, na Avenida Dom Hélder Câmara, em Del Castilho. Faminto e com vários arranhões, foi levado para a 44ª DP (Inhaúma), antes de ser encaminhado para a Deat, onde prestou depoimento até as 3h.

Polícia faz operação em favela na Penha

Em depoimento, Jin e You contaram que passaram a madrugada escondidos numa área de mata na Vila Cruzeiro. Eles disseram que ouviram barulho de motos rondando e viram homens armados. Um deles contou ter ficado num buraco, escondido entre pedras.

¿ Nosso primeiro objetivo era localizar o paradeiro dos estrangeiros. Agora é identificar os autores. Existem suspeitos, pessoas sendo procuradas ¿ disse Fernando Veloso.

O delegado contou que o depoimento dos dois chineses serviu para esclarecer algumas dúvidas da polícia, que ainda não havia entendido como dois estrangeiros saíram com facilidade da Vila Cruzeiro:

¿ Depois de ouvir a mecânica dos fatos, pareceu bastante razoável. Eles permaneceram escondidos na mata durante a noite. Pela manhã, saíram.

Ainda não está claro, porém, como é que os reféns fugiram do cárcere sem ser vistos e por que não havia vigias do lado de fora da cisterna. De acordo com o delegado, os chineses contaram que havia água e comida o bastante para muitos dias. Eles passaram cerca de quatro horas tentando sair do lugar.

¿ Eles fizeram uma pilha com as vasilhas de água, subiram nela e usaram um cabo de vassoura, que estava dentro da cisterna, para empurrar a tampa ¿ disse Veloso.

Ele informou ontem que a Polícia Federal estava verificando se os chineses estão em situação regular no país. Segundo o delegado, a polícia analisa vários motivos para o crime:

¿ O ponto mais sensível desse caso é a motivação. Não posso adiantar muita coisa. Seria leviano dizer algo sem ter comprovação. Há mais de uma linha de investigação e a disputa por mão-de-obra barata é uma delas. Mas é preciso ter mais segurança para passar outras informações. Não sabemos se a escolha deles foi aleatória. São profissionais de baixa qualificação, no nível de pedreiros. Não posso dizer o que foi, posso dizer o que não foi. E o que aconteceu não foi assalto a turistas.

Ontem à tarde, policiais militares realizaram uma operação na Vila Cruzeiro em busca dos seqüestradores. Oitenta homens do Batalhão de Operações Especiais (Bope) ocuparam a favela e um grupo se instalou no Destacamento de Policiamento Ostensivo (DPO). Segundo o tenente-coronel Pinheiro Neto, comandante do Bope, a ocupação é por tempo indeterminado.

Houve uma intensa troca de tiros na parte alta do morro. Um suspeito de ser traficante foi morto e levado dentro de um carro blindado para o Hospital Getúlio Vargas, na Penha. Um morador também foi baleado. Antônio Rodrigues das Neves, de 57 anos, foi atingido por um tiro no tórax. Segundo o relato de testemunhas que foram ao Hospital Getúlio Vargas, ele é morador da localidade conhecida como Caracol e foi baleado quando estava dentro de um bar, por volta das 14h30m. Enquanto os PMs do Bope entravam na Vila Cruzeiro, todos os acessos foram ocupados por policiais. Oito carros blindados foram usados na operação. A cisterna onde os chineses e o vietnamita foram mantidos como reféns não foi encontrada.

O conselheiro da embaixada do Vietnã no Brasil disse ontem que, pela quantidade de barras de cereais e garrafas de água no cativeiro, os bandidos pretendiam ficar muito tempo com ele e os três chineses. O diplomata contou que foi dele a iniciativa de fugir, pois sabia que dificilmente sairiam vivos:

¿ Havia 80% de chances de sermos mortos. Os chineses só falavam mandarim. Nos comunicamos por gestos. Como eu falava português, fiquei prestando atenção nos ruídos. Ouvi vozes de mulheres e crianças ao redor. Quando fazia silêncio, empurrávamos a tampa da cisterna, o que durou quatro horas ¿ contou.

Depois que o grupo saiu da cisterna, o diplomata tentou pular um muro, mas não conseguiu:

¿ Sou muito velho. Dois chineses pularam e eu e o outro saímos pelo portão da frente. Corri muito. A rua estava cheia, mas ninguém ajudava.

Apesar do susto, ele disse que pretende visitar o Rio outras vezes. Bem-humorado, Vu Thanh Nam foi ontem para São Paulo e pretende voltar no fim do ano com uma delegação vietnamita.