Título: Lista única e transplante
Autor:
Fonte: O Globo, 23/08/2008, Opinião, p. 7

O transplante de órgãos apresenta características peculiares que o distinguem dos outros procedimentos de alta complexidade. Depende de iniciativas do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), das equipes transplantadoras e da sociedade em geral. Falhas em qualquer um desses pólos desequilibram a base na qual se apóiam prejudicando candidatos que deles dependem para sobreviver.

O noticiário sobre eventuais irregularidades no transplante de fígado estimula reafirmar alguns fatos, a fim de evitar efeitos deletérios na credibilidade do sistema e conseqüentemente no consentimento familiar à doação. A participação do pólo social é particularmente essencial, já que a falta de enxertos representa o fator mais importante para a redução das listas de espera. Além disso, recentemente, graças a iniciativas do Ministério da Saúde/SNT, verificou-se um aumento da captação que permitiu, em São Paulo, uma elevação de 29% dos transplantes realizados. É um resultado auspicioso que deve ser reconhecido e preservado.

Quando a demanda por um atendimento médico é maior do que a capacidade de atendê-la, é necessário estabelecer um critério que defina a quem atender primeiro. Deve ser equânime, transparente e auditável. Em 1997, o Ministério da Saúde criou a lista única e um rigoroso sistema de controle que atingem plenamente esses requisitos. A ordem de atendimento obedece ao critério de gravidade, ou seja, os mais graves são transplantados antes daqueles que podem esperar graças à sua maior reserva funcional. A gravidade é calculada da forma mais objetiva possível, empregando o índice MELD (Model for end stage liver diseases), que a avalia por meio de uma fórmula matemática baseada em resultados numéricos de exames laboratoriais.

O sistema de controle inclui as seguintes medidas:

- são gravadas e armazenadas todas as comunicações telefônicas da ou para a Central de Transplantes (CT);

- somente são transplantados os candidatos inscritos na CT e por ela ordenados conforme o critério MELD;

- são aceitos apenas exames realizados em laboratórios credenciados;

- a disponibilidade de qualquer doador é notificada à CT por telefone (pt);

- a CT avisará (pt) a equipe do receptor em primeiro lugar na lista com tipo de sangue ABO compatível;

- se o transplante for realizado, a equipe notifica (pt) a CT para que o receptor possa, pelo resto da vida, receber gratuitamente do Estado a medicação imunossupressora;

- se a equipe recusar o enxerto, as razões da recusa são registradas e a CT oferece (pt) o órgão ao próximo receptor da lista, habitualmente de outra equipe. A seqüência se repete até que o enxerto seja transplantado;

- o enxerto é descartado apenas se todas as equipes o recusarem;

- disponibilizam-se todos os dados via internet;

- todos os meses, enviam-se ao Ministério Público a relação dos pacientes inscritos, dos doadores disponíveis, dos enxertos aproveitados, dos transplantes realizados e a gravação de todos os telefonemas que passaram pela CT.

Dessa forma o controle é feito pela CT, pelo Ministério Público, pelos membros de todas as equipes e, via internet, pelos outros pacientes inscritos. Qualquer desobediência, como a eventualmente ocorrida no Rio de Janeiro, deve ser interpretada como um fato isolado e dimensionada considerando os 941 transplantes de fígado realizados, no Brasil, em 2007, que obedeceram ao princípio fundamental de fazer do transplante um fim por ele mesmo e não um meio para atingir outros fins.

SILVANO RAIA é professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e pioneiro do transplante de fígado no Brasil.