Título: Cirurgião amordaçado pela Justiça
Autor:
Fonte: O Globo, 23/08/2008, O Globo, p. 18

Joaquim precisa de autorização para dar entrevista e está impedido de falar com médicos da própria equipe

Proibido de dar entrevistas, Joaquim Ribeiro Filho só conseguiu dar a sua versão sobre as acusações da Polícia Federal depois de uma autorização judicial. O médico, um dos principais especialistas em transplantes de fígado do país, ainda está impedido de se comunicar com os médicos de sua equipe. Ele se defende e diz que as acusações da Polícia Federal são frágeis.

Confiante de que as contradições existentes no processo serão esclarecidas na Justiça, em entrevista ao GLOBO, o cirurgião reiterou que em nenhum momento cometeu irregularidade e garante nunca ter voltado às costas para o atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

- Se tivesse voltado às costas para o Fundão, como outros fizeram, estaria rico.

Célia Costa

O que senhor diz sobre as acusações da polícia?

JOAQUIM RIBEIRO FILHO: As acusações são frágeis e inverídicas. Não tive acesso ao processo integralmente, mas li algumas coisas que são extremamente montadas. Por exemplo: eles colocam um documento de que a família (caso Arraes) teria alugado um avião na parte da manhã e a morte cerebral do doador só foi constatada à tarde. Foi por volta das 18h que a Central de Transplantes de Minas foi informada da morte do doador. Como a família poderia ter contratado o avião pela manhã? Conversei com a família e isso foi checado. Foi bastante claro e ocorreu depois do acidente do avião da TAM. Não tinha como esquecer. No caso do Ariston, fui absolvido por 21 a 0 pelo Conselho Regional de Medicina (Cremerj) e a denúncia foi apreciada pela Justiça federal, que a rechaçou em primeira e segunda instância, com provas muito concretas. Estou absolutamente tranqüilo quanto a isso, seguro de que não cometi nenhuma irregularidade e bastante confiante na Justiça. Sei que vai ser dado o tratamento adequado.

Segundo a Polícia Federal, num dos casos o paciente pagou cerca de R$200 mil, sendo que os honorários médicos foram R$90 mil e o restante, pago à Clínica São Vicente. O preço de um transplante é esse mesmo? Por quê?

JOAQUIM: Eles disseram que eu recebi R$200 mil a R$250 mil. Como, se eles receberam a nota fiscal? Eles apreenderam um livro da minha firma, que mostra os honorários cobrados claramente. Tudo está comprovado com recibos e com a Receita Federal. Os R$90 mil são honorários da equipe médica. No Brasil, apenas os preços de quem presta medicina de grupo são tabelados. No particular, o médico cobra e o paciente paga. Claro que não pode haver abusos.

O senhor alega que o fígado doado para Jayme Ariston era marginal. Por que o senhor usava esse tipo de órgão, que costuma ser descartado em outros estados?

JOAQUIM: O mundo inteiro procura expandir o pool de doadores. Não tem órgão para todo mundo. Primeiro, o critério era a idade. Depois, as condições do órgão. Se eu seguir o protocolo, vou transplantar muito menos. Não há órgão suficiente para atender a demanda e isso não é um problema apenas do país. No Brasil é pior, porque descartamos um quinto do que deveríamos captar. Descartar os fígados marginais, como as pessoas descartam, seria um prejuízo. Esse descarte corresponde à morte de receptor e isso é uma coisa que tem que ficar muito clara. Com um fígado marginal, estamos salvando a vida de alguém. O fígado marginal é responsável por 30% a 40% dos transplantes no mundo.

Apesar de o senhor dizer que o fígado era marginal (caso Ariston), um laudo de uma hepatologista do Fundão diz que o órgão era normal. Como o senhor explica as diferentes avaliações?

JOAQUIM: Primeiro, esse laudo não é de uma hepatologista. O laudo que a Polícia Federal usa não existe. O laudo de normalidade desse fígado era de esteatose (degeneração gordurosa). Por isso, digo que era para um médico ver e não um burocrata. O fígado tinha as bordas rombas e o paciente tomou uma série de medicamentos para manter a pressão arterial, coisas que comprometem o órgão, e por isso ele foi considerado marginal. A biópsia só apareceu uma semana depois, quando seria imprestável para transplante. É uma decisão que teria que ser tomada rapidamente, porque não foi feita a biópsia na hora.

Causa estranhamento no processo o fato de todos os médicos acusados de participarem do esquema terem sido defendidos por advogados indicados pelo senhor. Isso não impediria que eles falassem a verdade nos seus depoimentos? Não houve constrangimento?

JOAQUIM: Isso não procede. O que aconteceu é que eu, como chefe da equipe, fui procurado durante as investigações pelos médicos, que se sentiram intimidados e pediram ajuda, acompanhamento. Alguns pediram, outros não. Além disso, essas pessoas estavam intimidadas porque o delegado e outros policiais entravam no Fundão portando fuzis. Pelo que sei, não há nenhum impedimento a que um advogado assista pessoas investigadas pelo mesmo fato.

A lista de transplantes tinha nomes repetidos, pessoas já mortas. Isso não é um indício de que ela não era levada a sério?

JOAQUIM: Concordo. É indício de que não estava sendo atualizada. Como um paciente transplantado continuava na lista? Isso mostra um erro brutal. Uma falha grave do sistema. Nós não temos acesso à lista. O enxugamento da fila aconteceu no mundo inteiro por causa da aplicação do Meld (parâmetro usado para classificar os futuros receptores), e não apenas no Rio.

Uma auditoria do Denasus encontrou 11 pessoas transplantadas que sequer estavam na lista.Como o senhor explicaria isso?

JOAQUIM: Essa auditoria é posterior à denúncia. São coisas que estão querendo replantar. Ela já foi rebatida. Se a pessoa transplantada foi mantida na lista, isso ocorreu tanto no Bonsucesso (HGB) quanto no Fundão. Quando estávamos na central fazíamos a checagem da lista e agora não temos acesso.