Título: Disputa por Raposa fica em 1 a 0
Autor: Brígido, Carolina; Carvalho, Jailton de
Fonte: O Globo, 28/08/2008, O País, p. 3

Ayres Britto defende reserva em área contínua; Direito pede vista e adia julgamento

Carolina Brígido e Jailton de Carvalho

Com plenário lotado e sob olhares de índios, políticos e arrozeiros de Roraima, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou ontem o julgamento que decidirá o modelo de demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O relator, ministro Carlos Ayres Britto, votou pela delimitação contínua das terras, como determinou o governo federal em 2005, com o apoio da maioria dos índios da região. Ayres Britto defendeu a retirada imediata dos não-índios que habitam o local, entre eles produtores de arroz. A sessão foi interrompida por um pedido de vista do ministro Carlos Alberto Direito.

O pedido de vista foi negociado entre os ministros nos intervalos da sessão, que sentiram a necessidade de acrescentar tópicos a seus votos após a manifestação de advogados e do relator. O presidente do STF, Gilmar Mendes, defendeu a decisão de Direito:

- Tivemos um voto brilhantíssimo do ministro Carlos Ayres Britto, mas há muitas dúvidas que podem demandar verificação. Num caso como este, temos que nos acostumar, eventualmente, com um pedido de vista - disse ele, que espera a conclusão para este ano.

A ação foi proposta pelos senadores Augusto Botelho (PT) e Mozarildo Cavalcanti (PTB), de Roraima. O principal argumento é o de que a demarcação contínua fere o princípio federativo, pois transfere para a União a responsabilidade por grande parte do território do estado. Os parlamentares defendem uma demarcação em ilhas, excluindo plantações de arroz, sedes de municípios, áreas de fronteira, o terreno destinado a uma hidrelétrica e rodovias.

Em seu voto, com mais de três horas de duração, Ayres Britto ressaltou que as terras da reserva, com extensão de 1,74 milhão de hectares, são de direito dos índios. Ele afirmou que os produtores invadiram terras da União a partir de 1992, quando o processo de demarcação da reserva já havia iniciado. O ministro está convencido de que os índios foram expulsos de suas terras originais, que teriam sofrido, ao longo dos anos, um "processo de espremedura topográfica".

- Os rizicultores não têm direito adquirido sobre a posse. Ela é fruto de inescondível esbulho. Os índios foram de lá enxotados, escorraçados, não sem antes opor resistência - afirmou, acusando os arrozeiros de degradar o meio ambiente e de impedir o acesso dos índios a solos férteis e a rios.

Ayres Britto refutou o argumento de que a reserva inclui área de fronteira com a Venezuela e a Guiana. Segundo os autores da ação, sem os fazendeiros a faixa ficaria desguarnecida. O ministro esclareceu que, segundo a Constituição, não há incompatibilidade na fixação de uma reserva indígena em área de fronteira. A reserva é de responsabilidade da União, que pode convocar as Forças Armadas para garantir a segurança:

- Se as terras permanecem indígenas, a despeito dos empreendimentos públicos nela incrustados, nem por isso a União não decai do seu dever, de comandar, de coordenar o uso contínuo de tais empreendimentos. O formato de toda demarcação indígena é o contínuo. Porque somente ele viabiliza os imperativos constitucionais, que respondem pela vertente fundiariamente generosa da Constituição.

O relator afirmou que os índios têm na Constituição uma verdadeira "carta de alforria", com seus direitos reconhecidos em 18 artigos. Ele ressaltou no voto qualidades supostamente inatas aos índios, como o patriotismo, o comportamento obsequioso, a falta de vontade de enriquecer às custas de outros, a vida sem ostentação material, a postura religiosa e o respeito ao meio ambiente. Comparou esse espírito com o de brasileiros ilustres: Santos Dumont, Tom Jobim, Garrincha, Oscar Niemeyer e Daiane dos Santos.

O procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, também defendeu a demarcação contínua da reserva e criticou os arrozeiros.

- Quem estava na reserva (antes da homologação) já recebeu indenizações vultosas. Quem remanesce são ocupantes de notória má-fé, responsáveis por graves danos ambientais - disse Antonio Fernando.

Na primeira parte da sessão, três advogados que defendem a demarcação segmentada da área argumentaram que o estudo antropológico feito pela Funai é inconsistente, pois não levou em consideração a presença de não-índios estabelecidos há décadas.

- A ocupação do espaço desocupado não é algo ilegítimo. Se fosse, o Brasil estaria hoje na linha de Tordesilhas - disse o advogado Francisco Rezek, ex-ministro do STF, que defende o governo de Roraima.

Segundo dados do Ministério Público Federal, Roraima tem 22,41 milhões de hectares. A área de Raposa Serra do Sol corresponde a pouco mais de 7% do território estadual. Excluídas outras terras indígenas e áreas de preservação, sobrariam 10,85 milhões de hectares para o estado, que tem 400 mil habitantes.