Título: A milícia mostra sua cara
Autor: Ramalho, Sérgio
Fonte: O Globo, 28/08/2008, Rio, p. 16

Grupo que atua na Gardênia Azul é investigado por exploração de prostituição infantil

Sérgio Ramalho

Aos 13 anos, Maria ( nome fictício), é franzina, tem corpo de menina, ainda sem sinais da adolescência. A ausência de atributos físicos levou-a para a "fila das novinhas". A expressão é comum em reuniões organizadas por integrantes da milícia que atua na Gardênia Azul, em Jacarepaguá. Numa casa na Avenida Canal do Anil, os milicianos selecionam crianças e jovens, entre 9 e 14 anos, que vão ser negociadas em noitadas embaladas por bebidas e drogas. Depois de chegar às favelas com o marketing do choque de ordem, seduzindo moradores com a promessa de pôr fim ao tráfico de drogas, a milícia está sendo investigada pelo Ministério Público Estadual pela prática de um dos crimes mais cruéis: a exploração da prostituição infantil.

Desde domingo, a série Favela S/A tem mostrado quem lucra explorando negócios em comunidades pobres do Rio. A milícia descobriu agora que a exploração sexual de crianças e adolescentes pode ser mais um filão. Antes, casos de prostituição infantil aconteciam em redutos do tráfico, sendo comuns em bailes funks.

A investigação da 19ª Promotoria de Investigação Penal (PIP), do Ministério Público do Rio, tem como base um documento do Centro de Apoio às Promotorias da Infância e Juventude. Nele, há relatos de parentes e das vítimas atraídas para orgias. As primeiras denúncias foram feitas em agosto do ano passado. Na última semana, começaram os trabalhos para identificar e punir criminalmente os milicianos. Os acusados poderão ser denunciados por exploração da prostituição infantil, com penas de quatro a dez anos de prisão, e estupro, que é crime hediondo, porque há presunção de violência, já que as vítimas, à época, tinham menos de 14 anos. Com isso, a pena máxima pode chegar a 15 anos de reclusão.

Sobre a prática desse tipo de crimes em favelas, o jurista Hélio Bicudo diz que a exploração da prostituição infantil, historicamente, costuma ser mais intensa em áreas pobres:

- Quanto mais pobre o lugar, mais há casos de exploração da prostituição infantil. Embora não seja um crime hediondo, os juízes brasileiros, na hora da dosagem da pena, normalmente optam pela punição máxima. É uma tradição nos tribunais - explica o jurista.

Para a antropóloga Alba Zaluar, a proposta de choque de ordem, apresentada pela milícia ao chegar às favelas, é um artifício para seduzir a população local. Ela lembra que esses grupos paramilitares estão envolvidos numa série de crimes, dos econômicos aos homicídios:

- Os milicianos se apresentam como defensores da ordem e da moralidade, mas sabemos que eles cometem todos os tipos de crimes, agridem, humilham, matam. E o pior: os milicianos pertencem ou já pertenceram às próprias instituições do Estado que deveriam defender a lei. Do ponto de vista social, a exploração da prostituição infantil, assim como o estupro, é um crime sem perdão. Tanto que, quando chegam aos presídios, os condenados por esses tipos de crime são punidos pelos outros detentos.

Um real por noitada

O aliciamento das meninas veio à tona com o depoimento, em agosto de 2007, da mãe de Ana (nome também fictício), de 12 anos. Segundo a mulher, a filha fugiu de casa à noite para participar da "fila das novinhas". As meninas selecionadas pelos milicianos recebiam um real para participar das noitadas.

A mãe de Ana contou ter descoberto a existência das orgias na noite em que a filha e uma amiga dela, Maria, chegaram em casa sujas. Maria estava com hemorragia, devido a seguidas relações sexuais. A menina contou ter recebido um real depois de ter feito sexo com 23 homens, sem preservativo. Na ocasião, a mãe de Ana disse que iria à polícia, mas tanto a filha quanto a amiga disseram que negariam tudo. De acordo com os depoimentos prestados no Conselho Tutelar de Jacarepaguá e no Centro de Apoio às Promotorias da Infância e Juventude, as meninas demonstravam um certo orgulho por terem sido escolhidas por milicianos.

Os paramilitares dariam preferência às meninas com menos de 14 anos. As mais velhas, de acordo com os relatos, passavam a fazer programas agendados por uma mulher identificada apenas como Beatriz. Nesses casos, elas eram levadas no porta-malas de carros a motéis da região e recebiam R$20 por vez. Para não chamar a atenção das recepcionistas, Beatriz e o cliente passavam-se por namorados ao entrar nos estabelecimentos. Na garagem, a menina era retirada do porta-malas. Nos depoimentos, algumas garotas disseram que o "trabalho" com Beatriz era melhor porque ganhavam bem mais do que na "fila das novinhas".

A gravidade da denúncia feita pela mãe de Ana resultou no acolhimento das duas meninas, que estão recebendo acompanhamento médico e psicológico num abrigo. Três processos administrativos estão em andamento na 1ª Regional da Infância, no Fórum de Cascadura. As ações correm em segredo de Justiça, como estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e as mães podem perder o pátrio poder.

Não houve até agora qualquer operação para reprimir a exploração sexual infantil na Gardênia Azul. Os depoimentos prestados sequer foram encaminhados à delegacia regional ou à Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima, que investiga crimes praticados contra jovens. Procuradas pelo O GLOBO, as promotoras Márcia Velasco e Christiane Monnerat, responsáveis pela 19ª Promotoria de Investigação Penal, confirmaram o início da investigação, mas, como a apuração envolve crianças, informaram que não poderiam comentar o caso.

COLABORARAM: Carla Rocha e Cristiane de Cássia

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