Título: A violência como commodity
Autor: Cássia, Cristiane de
Fonte: O Globo, 28/08/2008, Rio, p. 17

Só em cinco comunidades, milícia e tráfico faturam R$256 milhões por ano

Cristiane de Cássia

Um mercado de ações sangrentas, com base no medo e na violência, é controlado por traficantes e milicianos em pelo menos 66% das favelas do Rio. A polícia não sabe ou não informa quanto é a receita dessa indústria do crime. Mas, em apenas duas favelas dominadas pelo tráfico e três sob o poder da milícia, a estimativa de policiais civis é que o faturamento chegue a R$256 milhões anuais. Nem o alto risco do negócio espanta adolescentes em busca de dinheiro rápido, como a menina que aos 14 anos gerenciava uma boca-de-fumo.

- Vinha gente de fora comprar o pó (cocaína) que a gente vendia. Nossa boca faturava R$3.500 por semana - conta a jovem, que deixou o tráfico e hoje vende roupas que aprendeu a bordar depois de ser detida por assalto.

Rocinha lucrativa

São jovens como ela que lidam com o varejo das drogas em favelas. Com localização privilegiada e de fácil acesso, fatores cruciais para o sucesso de qualquer negócio, a Rocinha tem o tráfico mais lucrativo. O faturamento é de R$15 milhões por mês (R$180 milhões anuais), conforme estimativa da deputada federal Marina Maggessi (PPS-RJ), policial que esteve à frente da Delegacia de Repressão a Entorpecentes. Na Mangueira, investigações da 17ª DP (São Cristóvão) apontam faturamento médio de R$1 milhão por semana - R$52 milhões por ano.

No varejo do tráfico, porém, falta o princípio básico do capitalismo: o de acumular para investir, como analisa o economista francês Michel Schiray. Algumas quadrilhas ainda contribuem para "caixinhas" de facções, usadas para pagar advogados, por exemplo. Chefes compram armas - na Rocinha, são pelo menos cem fuzis valendo cerca de R$3,5 milhões, segundo a 15ª DP (Gávea) - e guardam dinheiro até enterrado para emergências, como fugas. Poucos investem em mototáxis ou compram lojas para as mulheres. Já os "peões" do crime - que não recebem mais de três salários mínimos, conforme o Observatório de Favelas - consomem logo o que ganham.

- Ganhei R$50 por semana como "sintonia", guardando droga, e o triplo para embalar. Gastei com namorada, balada e uma coleção de bonés - diz um jovem ex-traficante de uma favela da Zona Oeste.

Pré-mafiosos

Esse pouco planejamento dos gastos leva o juiz Walter Maierovitch, especialista em combate ao tráfico, a classificar as quadrilhas nas favelas do Rio como pré-mafiosas:

- Elas têm o controle territorial e social, mas não conseguem gerenciar o investimento. Já a milícia é mais qualificada para reciclar o dinheiro - analisa o juiz.

A polícia investiga o investimento de milicianos em imóveis, comércio e veículos. A 35ªDP (Campo Grande) calcula quanto o grupo conhecido como Liga da Justiça faturava com negócios como TV a cabo clandestina e transporte alternativo em três favelas e 90% de Campo Grande. Eram cerca de R$24 milhões anuais antes da prisão, no mês passado, do deputado estadual Natalino Guimarães, apontado pela polícia como chefe dessa milícia.

A oferta de segurança é cartão de visita para entrar nas favelas, mas a base financeira de várias milícias é a exploração de serviços, como mostrou a série Favela S/A na reportagem de ontem. Segundo o titular da 35ª DP, delegado Marcus Neves, elas pagam R$800 por semana ou participação em pontos de TV e vans aos empregados, alguns deles ex-traficantes que até mesmo tatuam o símbolo do Batman no corpo como prova de fidelidade à Liga da Justiça.

Negócios de milicianos e traficantes ultrapassam as fronteiras das favelas. Em ruas fechadas e conjuntos habitacionais próximos, algumas milícias cobram taxas de moradores e comerciantes por segurança, variando de R$15 a R$90, segundo a Delegacia de Repressão ao Crime Organizado.

Já os traficantes abrem "esticas" de venda de drogas fora das favelas e, em alguns casos, têm parcerias com ladrões. Segundo o titular da Delegacia de Combate às Drogas, delegado Marcus Vinícius Braga, alguns "peões" do tráfico emprestam as armas. Já os chefes de quadrilhas ligadas à facção criminosa mais antiga do Rio estabelecem um valor de locação ou alugam armas por 20% a 30% do valor do produto roubado. Conforme investigações da Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos (Drae), Carlos Oliveira, um fuzil é alugado por R$2.500 a R$3.500, mas o valor total da arma é pago se o "inquilino" perdê-la.

Morte por dívida

Tanto traficantes quanto milicianos podem ser considerados capitalistas selvagens no pior sentido. Eles não plantam nada, não processam nenhum bem, mas produzem vítimas da violência. Gente como o biscateiro Adeildo Alves Cunha, de 33 anos, morto há dois meses em Rio das Pedras, Jacarepaguá, área dominada pela milícia. Sua família acredita que a dificuldade de Adeildo pagar um empréstimo a uma financeira na favela - que policiais da 32ª DP (Jacarepaguá) suspeitam ser controlada pela milícia - motivou o crime.

Desempregado, o biscateiro viu o empréstimo de mil reais virar rapidamente um débito de R$30 mil e passou dois anos fora, por saber que inadimplentes nesses casos não ficam com o nome no SPC: pagam a dívida com a própria vida. Ao voltar, negociou o valor para R$5 mil, mas só conseguia pagar os juros de 10% ao mês.

- Ele foi cobrado e tentei pegar empréstimo no banco, mas não deu tempo. Um mês depois, ele saiu e não voltou. Foi retirado de uma van e morto com tiro na cabeça - contou um parente da vítima.

Especialistas acreditam que muitas mortes em favelas dominadas por grupos armados são ligadas ao funcionamento do tráfico e da milícia.

- Essas quadrilhas não produzem nada, só mortes devido a disputas territoriais ou em nome de uma falsa segurança - analisa a cientista política Sílvia Ramos.

As maiores vítimas são jovens. Segundo estudo da Organização dos Estados Ibero-Americanos (OIE) de 2004, a taxa de homicídios entre jovens de 15 a 24 anos no Estado do Rio era de 102,8 mortos por cem mil, a maior do país.

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