Título: Anencefalia: médicos derrubam tese antiaborto
Autor: Alencastro, Catarina
Fonte: O Globo, 29/08/2008, O País, p. 15
Especialistas apresentam ao Supremo laudos comprovando que menina sobreviveu porque tinha outra doença
Catarina Alencastro
BRASÍLIA. O depoimento de especialistas em medicina fetal em audiência pública realizada ontem no Supremo Tribunal Federal pôs em xeque um dos principais trunfos que vinham sendo usados por quem se opõe à ação judicial que pede a liberação de aborto em caso de feto com anencefalia. Na segunda audiência pública realizada pelo STF sobre o assunto, médicos apresentaram laudos comprovando que a menina Marcela de Jesus, que sobreviveu por um ano e oito meses após o parto, não era portadora de anencefalia. Segundo o laudo, ela tinha outro tipo de má-formação do cérebro.
Relator do caso no STF, o ministro Marco Aurélio Mello disse acreditar que, a partir dessa informação, será dificil votar contra a ação movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde (CNTS).
- Não se terá mais o gancho que se teria pela não-interrupção da gravidez do caso da Marcela - afirmou.
O ministro espera que o resultado do julgamento programado para novembro seja "acachapante". Ele chegou a dizer que os 11 ministros vão votar pela liberação de prática em caso de feto anencéfalo.
Autor de uma liminar que permitiu, em 2004, que mães realizassem o aborto em casos de anencefalia sem a necessidade de recorrer à Justiça, Marco Aurélio deixou claro que continua sendo favorável à interrupção da gravidez de bebês sem cérebro.
Durante o debate, o médico Everton Petterson, da Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, mostrou imagens de uma ressonância magnética de Marcela, afirmando que ela tinha parte do cerebelo e resquícios do lóbulo temporal, localizado num dos hemisférios cerebrais. A anencefalia, explicou, se caracteriza pela ausência de hemisférios, ausência de cerebelo e tronco cerebral rudimentar, o que descarta a possibilidade de Marcela ser portadora do problema.
Das nove autoridades ouvidas ontem, sete defenderam a "interrupção terapêutica da gravidez" nesses casos, para usar terminologia preferida pelos médicos. Apenas o deputado Luiz Bassuma (PT-BA), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida, e a professora Lenise Garcia, presidente do Movimento Brasil Sem Aborto, foram contra. Ambos argumentaram que a anencefalia é uma deficiência e não um atestado de óbito.
- O aborto do anencéfalo caracteriza-se, sim, em aborto eugênico, vamos parar com eufemismos. O anencéfalo é um deficiente, ele não é um morto-vivo - reclamou Garcia.
Bassuma, por outro lado, afirmou que a permissão de aborto de anencéfalos pode abrir uma brecha para que portadores de outros tipos de deficiência possam também ser "eliminados".
A classe médica, representada pela Sociedade Brasileira de Genética Médica, Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, Conselho Federal de Medicina, Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia e a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) foi unânime em afirmar que a anencefalia é letal em 100% dos casos e que o diagnóstico, que pode ser feito entre a oitava e a décima semana de gravidez, é incontenstável e irreversível. A SBPC apela ainda para o fato de 41 países do mundo, inclusive o Irã, permitirem o aborto de anencéfalos.